domingo, 19 de julho de 2009

Livros – apontamentos à margem (11)

Proposta de (re)leitura de O Zero e o Infinito, de Arthur Koestler, à luz do “Livro de Job”

Job era um homem crente e bom. Jeová tinha-o como exemplo. Como seria melhor a humanidade se todos os homens fossem como ele! Mas Satã apresentou a Deus as suas dúvidas: Job era rico, saudável, tinha uma bela família, amigos fiéis e criados dedicados. Como não haveria de estar agradecido a Deus por tantas benesses? Mas, e se Deus lhe retirasse tudo isso? Não seria por ele renegado? E Deus aceitou o desafio e, retirando-lhe todos os seus bens e condenando-o a uma vida de sofrimentos horríveis, pôs à prova a sua Fé. A mulher de Job, reconhecendo a injustiça inaceitável presente na vontade de Jeová, aconselhou-o: “Amaldiçoa-O e morre”. Mas Job permaneceu, apesar de tudo, fiel ao seu Deus.

Rubachov (a personagem principal do romance de Koestler) tinha sido um dirigente altamente responsável. Toda a sua vida foi consagrada à causa do Partido, da Revolução e do Socialismo. Mas, a dada altura, “caiu em desgraça”. Por ordem do Chefe Supremo, do “Nº 1”, foi afastado de cargos dirigentes e, finalmente, preso, humilhado, caluniado junto dos seus antigos camaradas e do povo. Foi apontado como um traidor: devia ser levado a julgamento e condenado à morte. Percebe-se que estamos nos anos 30, no tempo dos Processos de Moscovo. Entretanto, as sociedades capitalistas afundavam-se na maior crise económica de sempre, o Fascismo e o Nazismo tomavam o Poder em Itália e na Alemanha. Adivinhava-se a guerra. E os povos voltavam os seus olhos para a União Soviética, que procurava sair do atraso secular que sobre ela se abatia desde os primórdios do Império czarista, através dos enormes sacrifícios exigidos pela rápida industrialização. Nela residia a esperança dos povos no Socialismo, numa alternativa possível ao capitalismo que tão cruelmente os fustigava.

O que poderia fazer Rubachov quando fosse julgado? Defender a sua inocência, mostrar ao mundo a iniquidade do regime pelo qual tantos tinham lutado e morrido e, com isso, retirar aos povos a esperança num mundo melhor? Dar razão àqueles que consideravam o socialismo uma utopia irrealizável e, portanto, a exploração, a miséria e a guerra, uma fatalidade?

Aquilo por que sempre tinha vivido e lutado exigia-lhe um último sacrifício. E Rubachov, para se manter fiel à sua causa, confessou os seus “crimes” e foi executado.

Tal como Job se submeteu à vontade de Jeová, Rubachov vergou-se às acusações do Tribunal que o “julgou” e aceitou a sua sentença.

Estas duas histórias, a de Job e a de Rubachov, sempre me fascinaram. Conhecê-las melhor remete-nos, obrigatoriamente, para a leitura da Bíblia e de Arthur Koestler, O Zero e o Infinito. Lisboa: Publicações Europa-América, s/d. Mas,depois, pode conduzir-nos a muitas análises e especulações.

Cito apenas leituras recentes: Sobre o “Livro de Job” e os problemas de ordem ética e religiosa que a sua leitura nos coloca, veja-se, por exemplo, James Rachels, Problemas de Filosofia, Lisboa: Gradiva, 2009. Sobre O Zero e o Infinito, Arthur Koestler e a sua peculiar interpretação das “confissões” arrancadas a velhos revolucionários comunistas durante os Processos de Moscovo, pode ler-se Tony Judt, O Século XX Esquecido. Lisboa: Edições 70, 2009. Bom proveito!

6 comentários:

  1. Assim de repente, a única coisa que posso dizer, sem fazer suar os neurónios, é que só entendo a vida como uma procura incessante da felicidade; mas essa felicidade tem duas vertentes: a individual e a colectiva. Sacrificar a felicidade individual pela colectiva é uma contradição dramática.
    Mas é o desfazer dessa contradição que define os heróis: Che Guevara, Jesus Cristo e Gandhi foram felizes sacrificando a aparente felicidade individual. Digo aparente porque não deixaram de ser felizes - talvez apenas tenham sacrificado a vida; apenas!
    Mas isto tem tanto que se lhe diga!!!

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  2. Não podia deixar de os convidar a passar por aqui: http://ovalordasideias.blogspot.com/2009/07/formiga-de-esopo-blogue-da-semana.html
    Não vale de nada, vindo de mim para um espaço como este. Mas é o que tenho para dar como o meu incentivo. E o meu obrigado, o texto acima, como outras pérolas deste blogue, merciam muito mais que um "Blogue da Semana". Porque isto é um espaço para a vida.
    Um abraço amigo,
    Carlos Santos

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  3. Caro Carlos Santos:
    Não sei se mereceremos tantos elogios. Mas em todo o caso, obrigado pela publicidade.

    Quanto ao convite para passarmos por O Valor das Ideias, é desnecessário: já nos habituamos a fazê-lo todos os dias. Aliás, pessoalmente, tenho uma confissão a fazer-lhe. Tenho, já há uns dias, ao lado do computador o Keynes, A Grande Crise e Outros Textos, mas tenho resistido à tentação de escrever publicar um comentário. Porquê? Porque estou à espera que alguém mais competente o faça. O Carlos Santos, por exemplo...

    Um abraço do
    António Cruz Mendes

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  4. Caro Carlos Santos:
    Faço minhas as palavras do meu amigo Cruz Mendes: “Não sei se mereceremos tantos elogios. Mas em todo o caso, obrigado pela publicidade”.

    Confesso-te que enquanto os lia, só conseguia pensar em outras duas coisas. Make My Day, a eterna frase de Dirty Harry, e a feliz coincidência de hoje perfazerem 40 anos da ida do homem à Lua. Pode muito bem não ter sido mais que um pequeno texto para ti, mas será certamente um grande salto para aformigadeesopo. Não será mais que uma pobre variação das palavras de Neil Armstrong, ainda assim tão verdadeira quanto o original.

    Um abraço
    Victor Malheiro

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  5. Cardoso:

    O sacrifício de Rubachov não teve nada de redentor, nem contribuiu para a felicidade colectiva, mas apenas para a perpetuação de uma mentira. Rubachov, simplesmente, foi vítima da armadilha ideológica que lhe foi lançada pelo seu inquisidor (um ex-camarada). E foi assim porque, em última análise, ambos partilhavam as mesmas crenças.

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  6. Bem sei, bem sei, e isso levar-nos-ia ainda mais longe na discussão do que é "ser fiel a uma causa"... Rubachov seria sempre vítima, qualquer que fosse a sua decisão. Nunca seria herói! Poderia abdicar da "causa" que foi sua em nome de um hipotetico "bem colectivo" ou então abdicar da sua integridade moral... Seja como for, ele seria sempre sacrificado... o que me incomoda é isto: defender grandes causas é tantas vezes um beco sem saída! Ou porque se revelam autênticas falácias, ou porque implicam uma luta condenada à partida...

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