terça-feira, 28 de julho de 2009

Arte e política – na morte da Merce Cunningham


Marcel Duchamp, John Cage, Merce Cunningham, Robert Rauschenberg, George Maciunas, Allan Kaprow… Um mapa para uma viagem pela arte contemporânea

Merce Cunningham, um dos mais notáveis e influentes coreógrafos contemporâneos, morreu no dia passado dia 26, em Nova Iorque.


Recordo a presença da Merce Cunningham Dance Company no Porto 2001: três espectáculos no Rivoli com a sala sempre esgotada. Fernando Ribeiro recorda uma outra actuação no Cine Teatro Vale Formoso “nos longínquos anos 60”. (Hoje, o Rivoli está nas mãos do Filipe La Feria e, no Vale Formoso, os pastores da IURD fazem milagres e exorcismos todas as semanas…) E chamo a atenção dos internautas mais desatentos para os vídeos presentes no You Tube, aliás divulgados por Fernando Ribeiro no seu blogue A Matéria do Tempo.

Muitas vezes, a importância de Merce Cunningham para a dança contemporânea tem sido equiparada à de Marcel Duchamp para as artes plásticas ou à de John Cage para a música. De Marcel Duchamp, todos conhecem os seus redy mades, objectos vulgares instituídos como obras de arte por decisão do artista. De John Cage, muitos terão presente 4’ e 33’’, uma peça musical onde alguém se senta ao piano e permanece imóvel durante aquele período de tempo. (Há também uma versão para orquestra.) Por vezes, leio que a “matéria” da peça é o silêncio. Não me parece. Durante os 4 minutos e 33 segundos, a assistência não consegue manter-se em silêncio absoluto: as pessoas mexem-se nas cadeiras, sussurram, tossem, etc. Ora bem, esses ruídos são a própria peça.

Esta “transfiguração do banal” (Arthur Danto) em obra de arte, estabelece uma relação evidente entre aqueles dois artistas. Jonh Cage fundou com Merce Cunningham a Merce Cunningham Dance Company em 1953 e foi o autor do ambiente musical de muitas das suas coreografias. Unia-os o propósito de explorar o lado puramente aleatório da criação artística. Se Cage compunha peças das quais podiam fazer parte todo o tipo de ruídos imprevistos, Cunningham criava coreografias que não obedeciam a uma lógica de movimentos e gestos definitivamente fixada, mas apenas a indicações de deslocações e tempos que deixavam uma grande margem de liberdade aos seus intérpretes e faziam de cada espectáculo uma ocasião única.

Com a Merce Cunningham Dance Company, colaborou também Robert Rauschenberg, de quem, no ano passado, pudemos ver uma magnífica exposição em Serralves. No seu catálogo, João Fernandes chama a nossa atenção para a sua importância “na desconstrução do ensimesmamento e da autonomia com que o expressionismo abstracto do pós-guerra tinham isolado a arte da vida”. Rauschenberg rejeita a identificação da arte com as possibilidades oferecidas pela exploração de um meio específico, defendida por Clement Greenberg, recupera a tradição dadaísta do “objecto encontrado”, experimenta os novos caminhos que lhe são oferecidos pela colagem, pela assemblage e pelas artes performativas e encontra-se naturalmente com Merce Cunnigham e John Cage.

Finalmente, Cage relacionou-se com o movimento Fluxus, criado nos anos 60 por George Maciunas, que pretendia vencer a distância que separava a arte da vida como forma de “purgar o mundo da vida burguesa” e “promover a realidade da não-arte para que ela pudesse ser desfrutada por todos… Dissolver as estruturas das revoluções, cultural, social e política numa frente comum, com acções comuns”. “Fluxus” funda-se precisamente na ideia do fluxo de criação e destruição, que é a corrente da arte e da própria vida.

Entre os vários artistas que participaram do movimento Fluxus, gostaria de destacar Allan Kaprow, muitas vezes designado como o “inventor” do happening, termo que designa um evento colectivo, onde, num quadro temporal e espacial dado se desenrola uma acção teatral minimamente programada. A participação do público introduz no acontecimento o elemento de imprevisibilidade que o define.

O mapa que me propus desenhar fica assim esboçado. Pelo caminho, vimos a Arte ser derrubada do seu pedestal. Objectos comuns passaram a ser objectos artísticos, ruídos transformaram-se em música, a inspiração artística confundiu-se com os resultados do acaso e pessoas vulgares tornaram-se sujeitos de actos criadores… A arte confunde-se com a vida. Serão estes caminhos, percursos da luta contra a alienação capitalista?

A questão fica de pé. Entretanto, quem quiser usar o meu mapa, terá de partir à procura dos exemplos que o ilustram.

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