O QUE É A NOVA ESQUERDA?
O exercício e a natureza do poder político como condição para a construção do socialismo estiveram no cerne de muitos debates travados no seio da esquerda europeia.
Os “socialistas utópicos” subestimaram o papel do Estado na definição da configuração das sociedades e tentaram criar “ilhas” socialistas no seio de sociedades capitalistas considerando que o seu bom exemplo seria suficiente para conquistar o apreço de todos, motivando-os para as necessárias transformações sociais, enquanto uma esquerda republicana colocava o assento na soberania popular, fundada sobre o sufrágio universal, como condição da mudança.
Partidários de Marx e de Bakunine confrontaram-se na Associação Internacional dos Trabalhadores. Preconizavam ambos o fim do Estado, mas os marxistas consideravam que a sua extinção seria uma consequência da vitória do socialismo, sendo que esta exigiria, antes de mais, a construção de um estado de ditadura do proletariado, enquanto os anarquistas consideravam que a destruição de todas as formas de sobrevivência de um aparelho repressivo era uma condição prévia à afirmação de uma sociedade fundada sobre a livre associação dos trabalhadores e que a “ditadura do proletariado” só poderia originar novas formas de dominação.
Mais tarde, surge a controvérsia “reforma ou revolução?”, protagonizada no seio da Social-Democracia alemã, nomeadamente pelos adeptos de Bernstein e de Rosa Luxemburgo, os primeiros defendendo uma via parlamentar e reformista para o socialismo e os segundos uma via revolucionária, sendo aparentemente dominantes as posições “centristas” dos seguidores de Kautsky. A ruptura verificar-se-ia definitiva com a 1ª Guerra Mundial (que abriria uma crise profunda na II Internacional), a revolução de Outubro, o nascimento da União Soviética e a criação da III Internacional. A oposição entre partidos comunistas e partidos social-democratas cindiu a esquerda desde então até aos finais do século XX.
Pode dizer-se, agora, que os dois paradigmas políticos e ideológicos que assim se definiram estão em crise.
O paradigma comunista (a ditadura do proletariado, a colectivização das forças produtivas, o crescimento económico centralmente planificado) sofreu, ao longo do século, vicissitudes várias. Sem a preocupação de ser exaustivo: a afirmação do estalinismo e a tímida “desestalinização” de khruschev; o conflito sino-soviético e a cisão do movimento comunista internacional; a Primavera de Praga e a invasão da Checoslováquia pelas tropas do Pacto de Varsóvia; e, por fim, a queda do Muro de Berlim e a derrota do “socialismo real” na Rússia e na Europa de Leste.
O paradigma social-democrata (a democracia liberal, o respeito pela propriedade privada e pelo mercado – embora o Estado reserve para si um papel, quer como investidor, quer como regulador económico, a redistribuição da riqueza por via fiscal e a afirmação do Estado Providência), depois dos “30 anos magníficos” que sucederam à 2ª Guerra Mundial e num contexto que, a partir dos anos 70, vai ser marcado pela estagnação e pela recessão económica (fase B de um ciclo de Kondratieff), pelo fim da Guerra Fria e pela globalização capitalista, sucumbiu à ofensiva política e ideológica do neoliberalismo e negou-se a si mesmo, adoptando a “3ª via”, teorizada por Anthony Giddens, posta em prática por Tony Blair e, depois dele, por quase toda a social-democracia europeia.
Hoje, a experiência do “socialismo real” é indissociável das ideias de ditadura totalitária, de subdesenvolvimento económico e de pobreza remediada. E a “terceira via” é, com o neoliberalismo, associada ao enfraquecimento do Estado-Providência, à fragilização das relações laborais, à diminuição dos rendimentos do trabalho na distribuição social da riqueza, à desregulamentação económica e financeira e, finalmente, à profunda crise em nos encontramos actualmente mergulhados. E é neste contexto que se afirmam movimentos sociais, organizações e teorias que se reclamam de uma “nova esquerda”.
A crise capitalista motivou um “regresso a Marx”, mas trata-se de uma recuperação do marxismo que não pode ignorar as experiências falhadas que, em seu nome, se realizaram ao longo do século XX nem as profundas transformações sofridas pelas sociedades capitalistas entre os finais do século XIX e os princípios do século XXI.
A concepção teleológica da história que se traduz na ideia de uma sucessão inevitável de “modos de produção”, que nos conduziria à sociedade sem classes, ao comunismo, deu lugar a uma visão possibilista, fundada sobre a hipótese de afirmação de vontades políticas diferenciadas. O papel messiânico reservado ao proletariado e, nomeadamente à classe operária (e, na versão leninista, à sua vanguarda partidariamente organizada), como força dirigente da revolução social, dilui-se numa sociedade onde se assiste a um enorme crescimento do sector terciário, onde as flutuações da condição social dos indivíduos são uma constante, onde grande parte da população (estudantes, reformados, trabalhadores por conta própria, trabalhadores em micro empresas familiares, etc.) não se enquadra nos perfis classistas burgueses ou proletários, tal como Marx os definiu e aos quais as sociedades capitalistas se deveriam progressivamente reduzir.
Numa sociedade muito marcada pelo individualismo, pelo multiculturalismo, pelo relativismo e pela instabilidade, surgem novas formas de intervenção cívica fora dos partidos políticos ou dos sindicatos tradicionais. Formas de organização em rede concorrem com as formas tradicionais de organização em pirâmide e a blogosfera multiplica os canais de comunicação social, rivalizando com os meios de comunicação tradicionais.
À contradição burguesia-proletariado somam-se as contradições produção/consumo-natureza, massificação-afirmação individual, dominação-libertação, e afirmam-se as causas pós-materialistas que se referem à qualidade de vida, à defesa do ambiente, aos direitos dos animais, à, à condição feminina, à sexualidade, às diferentes formas de organização familiar, etc.
O advento destas novas problemáticas encontra-se, aliás, na origem de um pensamento pós-marxista que encontramos, por exemplo, em Antonio Negri, Ernesto Laclau e Pierre Bourdieu.
Neste contexto, afirmam-se formas de intervenção política fora do quadro partidário que se exprimem, por exemplo, no Fórum Social Mundial, na actividade de várias ONG (Amnistia Internacional, Médicos Sem Fronteiras, Greenpeace, etc.), nas experiências do “comércio justo”, nas propostas da ATTAC, na afirmação dos movimentos ecologistas e noutros movimentos de cidadãos, por vezes debilmente organizados, em torno de reivindicações concretas (pelo reconhecimento dos direitos da mulher, dos homossexuais, pelo direito ao aborto, à eutanásia, contra a precariedade das relações laborais, contra o racismo, pela paz...).
Um olhar sobre a paisagem dos vários movimentos reunidos nas várias edições do Fórum Social Mundial recorda-nos ainda Proudhon e a sua ideia de uma utopia social fundada sobre uma federação de associações solidárias (mutualistas, cooperativas, etc.), síntese necessariamente instável de interesses comuns de sujeitos que protegem, acima de tudo, a sua liberdade individual, num equilíbrio de contrários que se opõe a disposições estáticas, centralistas e unitárias.
Mas poderão os movimentos contestatários reunidos no FSM, gerar, de facto, um modelo social capaz de se afirmar como alternativo ao capitalismo e à democracia representativa?
Estamos, de novo, perante a questão das formas de exercício do poder e das formas de organização da vida económica e social que abordámos no início deste texto. Tudo está em aberto, mas parece que uma possível solução deveria ser procurada no cruzamento das reivindicações democráticas (e, nomeadamente no quadro daquilo que habitualmente se designa por “democracia radical”), sociais e libertárias que se exprimem no seio dos movimentos que corporizam essa “nova esquerda”. Há um património social-democrata a defender e a aprofundar, ao qual se soma o conjunto de reivindicações designadas aqui como pós-materialistas, bem como à necessidade de encontrar soluções alteroglobalizadoras para um mundo de fronteiras cada vez mais esbatidas.
Parece-me que a conjugação de vontades num movimento político que não se queira esgotar em reivindicações fundadas sobre questões pontuais, conjunturais ou em interesses estritamente corporativos, mas que procure aquilo que designaríamos pelo “bem comum”, ainda não pode dispensar a existência da forma Partido. Mas os partidos que se reivindiquem de uma nova esquerda já não podem ser entendidos como vanguardas esclarecidas de uma determinada classe, fadada para transformar o mundo e emancipar a humanidade. Devem ser, antes, formações plurais, tanto no plano ideológico como no plano classista, vocacionadas para a definição de estratégias favoráveis à convergência dos diferentes movimentos sociais, em ordem à construção de alternativas de poder susceptíveis de favorecer possíveis, necessárias e desejadas transformações sociais.
Acrescento que não acredito (e tenho medo de quem acredita…) em sociedades perfeitas e que, portanto, vejo tudo isso como um processo sem fim. Tratar-se-á, talvez, de um processo de sucessão de reformas, mas de reformas que não se impõem como limite a lógica de funcionamento das sociedades actuais, mas que ousam romper com a ordem capitalista podendo estar na origem de um mundo novo, mais livre, mais solidário e mais justo.
Os conceitos, certamente ambíguos, de reformismo-revolucionário, de ecossocialismo e de social-democracia libertária, têm sido usados para descrever as propostas da nova esquerda. Por outro lado, os seus detractores preferem classificar os diferentes intervenientes que lhe dão corpo sob a fórmula, na sua intenção pejorativa, de neocomunistas (leia-se “criptocomunistas”). Serão estes conceitos capazes de informar uma indispensável redefinição de “socialismo”?
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