Ciclo de cinema na Velha-a-Branca
O meu amigo José Coimbra tem vindo a organizar na Velha-a-Branca uma série de ciclos de cinema que procuram compensar o panorama desolador oferecido em Braga pelo circuito comercial. Desta vez desafiou-me para seleccionar os filmes que serão projectados em Janeiro. A ideia era mostrar obras representativas de diferentes estilos que se tivessem manifestado tanto no cinema como nas artes plásticas e na literatura.
Escolhi os seguintes:
Para o expressionismo, O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene; para o futurismo, O Homem da Máquina de Filmar, de Dziga Vertov; para o surrealismo, O Cão Andaluz, de Buñuel e de Dalí; e para o neo-realismo, A Terra Treme, de Visconti.
Eis o texto de apresentação do primeiro, que será apresentado já amanhã, dia 6-1-10:
ROBERT WIENE, O GABINETE DO DR. CALIGARI, 1919
O expressionismo é uma corrente artística que se manifesta na pintura (Ernst Kirchner, Karl Schmidt-Rottluff, Erich Heckel), na literatura (Wedkind, George Trackl, Gottfried Benn), na música (Schönberg, Webern, Alban Berg), na arquitectura (Bruno Taut, Mendelshon) e também no cinema (Murnau, Fritz Lang).
Num sentido lato, podemos considerar expressionistas todas as obras de arte que assumem uma atitude não naturalista, na medida em que nos propõem uma visão do mundo que não valoriza a representação da realidade observável, mas privilegia a invenção das formas que melhor traduzam os impulsos, emoções e sentimentos do artista. Num sentido mais restrito, refere-se ao expressionismo alemão dos anos 1910-30, onde são recorrentes os temas da solidão do indivíduo na grande cidade, da sexualidade oprimida e degradada e da omnipresença da morte.
Wiene realizou em 1919 O Gabinete do Dr. Caligari que é muitas vezes considerado como o filme-manifesto do cinema expressionista alemão. Realizado num preto e branco posteriormente tintado e inteiramente filmado em estúdio, o filme recusa qualquer abordagem naturalista: a interpretação dos actores é irrealista, a sua maquilhagem oferece-lhes uma facies caricatural, o ambiente onde se movem é assumidamente estilizado. A formação teatral de Wiene revela-se claramente nos planos-sequência onde a câmara fixa foca o centro do palco. Explora-se, no entanto, repetidamente, o recurso cinematográfico do close-up do rosto da personagem principal na sequência.
O horror despertado pela morte violenta, pelo assassinato provocado por forças que a razão não controla, é um tema capital do cinema expressionista alemão. Recordem-se os exemplos do Nosferatus (1922) de Murnau, d’ A Buceta de Pandora (1928) de Pabst ou do Matou (1931), de Fritz Lang. Também é esse o tema deste filme de Robert Wiene.
O argumento de Carl Meyer e Hans Jianowitz remete-nos para o mundo labiríntico e claustrofóbico da loucura. O narrador (Francis) conta a uma personagem secundária (e a nós), num longo flash-back, a história do Dr. Caligari. Trata-se de alguém que, na actualidade, tomou o lugar do misterioso Caligari que, em 1726, cometeu vários crimes por intermédio de um sonâmbulo que havia hipnotizado. Também o novo Caligari controla um indivíduo, Cesare, que vive num estado de catalepsia do qual só desperta por sua ordem. Será ele, como Francis nos quer fazer crer, o responsável pela série de crimes que, entretanto, são cometidos? Ou não passa tudo de uma fantasia de Francis, ele próprio internado num hospício do qual o Dr. Caligari é o director? Está Francis louco ou e é ele a única personagem saudável num mundo submetido ao poder de um louco?
Hermann Warm, Walter Reimann e Walter Rohrig oferecem-nos um fantástico cenário teatral. Os violentos contrastes de claro-escuro, as linhas serradas e as perspectivas distorcidas transmitem-nos uma forte impressão de desequilíbrio e ansiedade, afirmando-se como um aspecto fundamental (e particularmente audacioso) de um filme que, em última análise deve ser visto como o resultado de um projecto colectivo, envolvendo num plano de co-autoria o realizador, os argumentistas e os cenógrafos.
Na interpretação de Kracauer, o Gabinete do Dr. Caligari, realizado pouco depois da derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial, surge-nos como uma premonição da sede de poder e da espiral de violência que acabará por conduzir a Alemanha ao nazismo, seguindo a personagem carismática e hipnótica.de Hitler.
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