Ciclo de Cinema na Velha-a-Branca (3)
Na próxima 4ª feira, às 21,30, exibem-se os filmes de Buñuel Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro.
Eis o texto de apresentação:
O surrealismo é um movimento nascido após a 1ª Guerra Mundial que pretende explorar as manifestações da actividade do inconsciente no processo de criação artística. As suas origens encontram-se na literatura (André Breton, Paul Éluard, Louis Aragon), mas depressa se manifestou de uma forma evidente nas artes plásticas (Max Ernst, Dalí, Hans Arp) e no cinema (Man Ray, Jean Cocteau, Luis Buñuel). Os filmes escolhidos foram realizados por Buñuel. Trata-se de uma sessão dupla na medida em que se trata de duas curtas-metragens, a primeira de 18’ e a segunda de 67’.
Luis Buñuel, Um Cão Andaluz, 1929
Foi o seu primeiro filme e é um dos primeiros filmes surrealistas. Nasceu duma estreita colaboração com Dali. Buñuel diz-nos nas suas memórias (Mon Dernier Soupir) que lhe contou que havia sonhado com uma nuvem que cortava a lua e uma lâmina que seccionava um olho. Dali falou-lhe de sonhos onde viu uma mão donde nasciam formigas e de padres arrastados pelo chão. Decidiram então realizar um filme “a partir do encontro dos sonhos de ambos”.
“O argumento”, diz Buñuel, “ficou escrito em menos de uma semana, obedecendo a uma regra simplicíssima, adoptada de comum acordo: não aceitar nenhuma ideia, nenhuma imagem que pudesse dar lugar a uma explicação racional, psicológica ou cultural. Abrir todas as portas ao irracional. Só acolher as imagens que nos impressionavam, sem procurar saber porquê. Nunca houve qualquer desacordo entre nós. Foi uma semana de identificação completa. Por exemplo, um dizia: ‘O homem toca contrabaixo’. ‘Não’, dizia o outro. E o que tinha tido a ideia aceitava imediatamente a recusa. Sabia que o outro tinha razão. Pelo contrário, quando a imagem proposta por um era aceite pelo outro, parecia-nos imediatamente luminosa, indiscutível e entrava imediatamente no argumento”.
Trata-se de um processo criativo muito próximo do da escrita automática, já experimentado na poesia surrealista e, também, na fotografia (Brassaï) e no desenho (André Masson).
Mas, se o argumento pertence aos dois, a realização é sem dúvida de Buñuel. Dali só apareceu no último dias das filmagens, como actor, interpretando um dos padres arrastados pelo chão. Aliás, como nota João Benard da Costa nas suas Folhas da Cinamateca sobre Buñuel, toda a imagética do filme é bastante mais próxima da obra futura de Buñuel do que da de Dali.
O filme foi recebido entusiasticamente pelos surrealistas. “Belo”, disse Breton, “como o encontro dum guarda-chuva e dum cão numa mesa de autópsia”.
Diz-nos João Bénard da Costa que Um Cão Andaluz poderá parecer-nos hoje algo datado. Contudo, “há neste primeiro filme uma extrema concentração erótica que será apanágio dos grandes Buñuel, um ‘obscuro desejo’ em latência e profundamente perturbador, cuja raiz, como a de qualquer mistério, não é muito facilmente explicável, ou não o é de todo”.
Luis Buñuel, A Idade do Ouro, 1930
A participação de Salvador Dali foi neste filme perfeitamente secundária, de tal forma que Bénard da Costa considera mesmo que a habitual inclusão do seu nome no genérico como argumentista é algo abusiva.
Além disso, o argumento obedece a uma continuidade lógica ou, pelo menos, mais discernível, que o d’ Um Cão Andaluz. Penso que podemos dividi-lo assim: a 1ª parte (a Introdução) é dada pela cena 2 (luta dos escorpiões); as cenas 3 e 4 estabelecem a ligação com a 2ª parte ( cenas 5-17), que tratam da história de um amor proibido e a 3ª (Conclusão), a cena 18, da orgia no Castelo de Selligny onde Buñuel nos propõe a sacralização do prazer erótico.
Nas suas memórias, Buñuel, concentrando-se no tema central resume-o assim: “Para mim, tratava-se (…) dum filme sobre o amor louco, sobre um impulso irresistível que atirai, um para o outro, sejam quais forem as circunstâncias, um homem e uma mulher que nunca se poderão unir”.
Este amor faz oscilar todos os rituais e tabus burgueses. E isto acontece no meio de imagens irracionais, divertidas, oníricas ou francamente sacrílegas. Por outro lado, o seu estilo é perfeitamente clássico, quase neutro. “De tal forma que”, como nos diz Jacques Lourcelles (Dictionnaire du Cinema. Les Filmes), o cinema deu às ideias e aos sonhos buñuelianos não essa languidez e essa leveza próprias das elucobrações habituais das vanguardas, mas, pelo contrário, a força das evidências gravadas em mármore.
A sua projecção provocou um escândalo: os jornais católicos pediram a excomunhão do produtor, Pierre de Noilles; durante os treze dias em que esteve em exibição, sucederam-se os incidentes provocados por grupos conservadores que atacaram o cinema; e a Prefeitura da Polícia acabou por proibir o filme. Essa proibição haveria de ser mantida durante 50 anos. Só em 1980 foi exibido comercialmente em Nova Iorque, em 1981 em Paris e em 1982 em Portugal…
Num ensaio datado de 1937, Henri Miller afirmou que ”aqueles que se indignam, porque acham que o filme é contrário à ordem e aos, valores, nunca perceberão o que é a ordem e o que são os valores (…). É o elemento barroco da vida humana, ou melhor, da vida do homem civilizado, que dá à obra de Buñuel a sua dimensão de crueldade e de sadismo. Crueldade e sadismo desamparados, porque a grande virtude de Buñuel consiste em recusar enredar-se na deslumbrante teia de aranha do da lógica e do idealismo com que os homens tentam ocultar a sua verdadeira natureza”.
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