A propósito do livro de Rui Bebiano, Outubro
Leninismo e Totalitarismo
Nos últimos dias, A Formiga de Esopo tem estado em pousio. Na verdade, as mais recentes polémicas que têm agitado a blogosfera – o “caso Maitê, o caso Saramago/Bíblia – não me motivaram suficientemente. Por outro lado, tendo dito já aqui aquilo que penso acerca da situação política resultante dos últimos resultados eleitorais, pareceu-me desnecessário entrar na onda de previsões acerca da conduta do novo governo PS. Por agora, wait and see. E, assim, fui ficando sem temas que justificassem sentar-me ao computador. O que, aliás, tem as suas vantagens: não me sentir pressionado pela actualidade, liberta-me para outros trabalhos.
Mas, recentemente, veio-me ter às mãos o último livro de Rui Bebiano, Outubro. Coimbra: Angelus Novus, 2009. E julgo que merecerá a pena interromper as férias da formiga para o publicitar. O livrinho lê-se de um folgo e, embora alguns possam dizer que não nos traz nada de novo, para muitos outros (inclusive para uma certa jovem deputada do PCP) pode ser uma leitura proveitosa. É claro que aqueles que mais necessitariam de o ler serão aqueles que vão considerar a sua leitura menos agradável e que, portanto, mais rapidamente serão tentados a rejeitá-lo…
E, aliás, é esse o tema principal do livro: o da construção de um mito, nascido da conjugação da aspiração milenar à realização do paraíso na Terra, à Utopia, com uma visão teleológica da História “cientificamente” fundamentada, o mito do momento fundador da construção desse Mundo Novo que se corporizava na Revolução de Outubro de 1917. E o poder evocativo da revolução russa, a possibilidade de ver nela a legitimação de todas as mais generosas esperanças num mundo radioso, foi tão grande que atravessou todo o século XX, inspirou os movimentos revolucionários de todos os continentes e, de alguma forma, foi resistindo ao confronto desse sonho com todas as informações que entretanto iam chegando de um pesadelo que o desmentia.
Mas há, ainda, um tema secundário no livro de Rui Bebiano: o da relação do leninismo com a revolução e o socialismo soviético. Trata-se de uma questão fundamental que pode ser abordada a partir de dois pontos de vista.
Existe toda uma investigação metodologicamente viciada por diferentes perspectivas ideológicas que tem conduzido a uma análise do fenómeno soviético centrada na acção dos dirigentes políticos, na natureza dos programas adoptados, desprezando as circunstâncias históricas concretas que os condicionaram.
Assim, surge-nos uma visão apologética que atribui todos os sucessos da revolução à justeza de uma estratégia superiormente definida por Lenine, desde as obras onde estabelece a sua concepção de Partido (Que Fazer?, Um Passo em Frente, Dois Passos Atrás), até àquelas onde traça o plano da revolução (nomeadamente, as Teses de Abril) e define a sua concepção de ditadura do proletariado (O Estado e a Revolução, A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky); e uma visão crítica que vê precisamente nessas obras o “pecado original” donde nasceu a perversão totalitária do socialismo.
Segundo um diferente ponto de vista, os caminhos seguidos pela revolução russa não resultaram da aplicação prática de um plano longamente pensado e decidido por Lenine. Pelo contrário, foram aqueles que as circunstâncias históricas em que decorreu a revolução acabaram por impor. Não me parece ter existido nunca uma estratégia fielmente seguida pelos blolchevistas que os tivesse guiado do II Congresso do POSDR à tomada do Poder e, muito menos, às políticas que foram adoptadas no quadro da guerra civil e do “comunismo de guerra” e, posteriormente, no período da NEP, mas antes uma série de opções políticas que foram sendo tomadas, abandonadas e corrigidas sob a pressão dos acontecimentos.
Neste sentido, o “leninismo”, tal como o entendemos hoje, foi uma criação de Estaline, uma reformatação a posteriori das opções que, ao longo de mais de vinte anos, foram sendo assumidas por Lenine sob a forma de um corpo teórico coerente. O “marxismo-leninismo” (em última análise, um pseudónimo do estalinismo) passou a ser o “marxismo da época do imperialismo e da revolução proletária”. Onde havia, sobretudo, uma visão voluntarista e pragmática do marxismo, passou a haver “teoria”, o que foi sendo decidido em circunstâncias históricas particulares passou a ter validade universal. As violações das liberdades e da democracia assumidas pelos bolchevistas no período revolucionário, a progressiva subordinação da autonomia popular ao controle do partido, deixaram de ter um carácter excepcional (e é claro, mesmo assim, contestável), para passarem a ser uma norma. E não apenas na União Soviética, mas em todos os países onde outros partidos “marxistas-leninistas” tomaram o poder e mesmo na organização e nos métodos dos partidos comunistas na oposição.
Os vínculos que relacionam o “leninismo” e o totalitarismo ficaram então definitivamente estabelecidos.
Partilho com o Rui Bebiano as ideias fundamentais defendidas no seu livro. No entanto, aconselharia os seus leitores a confrontar a bibliografia que nos apresenta com uma obra que não cita, o livro de Moshe Lewin, O Século Soviético. Lisboa: Campo da Comunicação, 2004. Julgo que nos permite uma perspectiva mais abrangente destas questões.
P.S.: Conheci o Rui Bebiano em tempos longínquos, corria o ano lectivo de 1972-73. Eu era um jovem caloiro, acabado de chegar a Coimbra, matriculado na Universidade com o único propósito de “fazer a revolução”. Militava, então numa organização estudantil “semi-legal” impropriamente designada “Núcleos Sindicais”, e, clandestinamente, nos CREC’s da OCMLP (O Grito do Povo), um partido maoísta. O Bebiano assumia-se também como marxista-leninista e maoísta, mas mantinha uma certa distância em relação à actividade militante organizada. Recordo muito vivamente o quarto que ele alugava no Largo da Sé Velha, que funcionava muitas vezes como um espaço seguro onde era possível juntar-se um grupo de estudantes para conversar sobre “a Revolução”. Mais de trinta anos depois, “encontro-o” n' A Terceira Noite. A blogosfera tem este condão de fazer encolher o mundo e proporcionar encontros inesperados. Não podia deixar de referi-lo, tanto mais que, tendo partido de convicções muito próximas e tendo percorrido, talvez, caminhos muito diversos, parece-me termos, hoje, de novo, muitas ideias em comum. Embora, tal como em 72-73, eu as defenda “organizado” e o Bebiano como “independente”.
Para o caso disto lhe chegar às mãos (e embora seja provável que ele já nem se lembre de mim), aproveito para lhe mandar um abraço.
Claro que acabei por aqui chegar. Agradeço-te a leitura e enviei entretanto uma mensagem mais longa para o correio d'A Formiga de Esopo. Grande abraço! RB
ResponderEliminar