sexta-feira, 2 de outubro de 2009

A propósito do
"Compromisso à esquerda. Apelo à estabilidade governamentiva"


Jenny Holzer, de Survival (1983-85)

Não sou, de forma alguma, um adepto do “quanto pior melhor”. Já afirmei neste blog que preferia um governo minoritário PS a um governo PSD-CDS. Defendi-o na convicção de que uma situação assim poderia abrir uma janela de oportunidades para a aprovação de medidas legislativas susceptíveis de corrigir, ainda que parcialmente, situações de pobreza e de injustiça social.

Mas tenho de confessar que a forma como decorreu a campanha eleitoral e os resultados que dela saíram me deixaram bastante céptico acerca da possibilidade de entendimentos entre o PS e os partidos à sua esquerda. Durante a campanha, o PS tomou o BE como alvo preferencial dos seus ataques e praticamente ignorou o CDS-PP. Agora, encontra-se em condições de obter maiorias parlamentares somando os votos dos seus deputados aos dos eleitos pelo partido de Paulo Portas, podendo dispensar em muitos casos os votos dos partidos à sua esquerda. E, na minha opinião, nada disso augura boas notícias.

Em Portugal, o “povo de esquerda” é maioritário. E ninguém mais do que eu gostaria de ver essa maioria sociológica traduzir-se numa efectiva maioria política. Entretanto, muito raramente isso tem sucedido desde o 25 de Abril e as responsabilidades disso estão, com certeza, divididas por todos os partidos que se reclamam da esquerda.

Assim, um apelo ao diálogo e à convergência das esquerdas só pode ser bem-vindo se o entendermos como um apelo a uma reflexão autocrítica que questione, nuns casos, o apego ao poder pelo poder, noutros, uma postura redutora de contrapoder. Nos primeiros, a ambição socialista é pura e simplesmente esquecida em nome de um pragmatismo rendido à lógica do capitalismo; nos outros, a possibilidade de reformas socialistas é adiada para um mítico tempo pós-revolucinário, constantemente deferida para uns longínquos “amanhãs que cantam”.

Apoiarei, portanto, qualquer iniciativa que possa contribuir para a discussão de um programa de esquerda susceptível de, aqui e agora, lançar as bases de uma sociedade mais justa. Contudo, isso não pode significar que se defenda a “estabilidade governativa” como um valor em si mesmo. Sobretudo, não se pode fazê-lo escamoteando as divergências concretas que dividem o PS dos partidos à sua esquerda. Antes de mais, é necessário ter a coragem de identificá-las e de tomar posição a seu propósito, sob pena deste "Apelo" se tornar numa vaga manifestação de sentimentos pusilânimes.

Vou referir a título de exemplo algumas questões muito concretas:
1) O Código do Trabalho. Aprovado pelo 1º governo de Sócrates e rejeitado pelo BE e pelo PCP. Quem deve ceder?
2) O subsídio de desemprego. Actualmente, 200.000 desempregados são excluídos dessa protecção. O PS está disposto a alterar as regras da sua atribuição ou o BE e o PCP devem conformar-se com a situação actual?
3) O direito à reforma por inteiro ao fim de 40 anos de descontos. O PS é contra, o BE e o PCP a favor. Em que ficamos?
4) As taxas moderadoras. Na AR, o PS chumbou há poucos meses uma proposta do BE para acabar com as taxas moderadores nos casos de cirurgia e internamento. Deve rever essa posição ou fica tudo na mesma?
5) A luta contra a corrupção e o enriquecimento ilícito. Medidas propostas neste sentido foram rejeitadas pelo anterior governo. Não há nada a fazer?

Muitos outros exemplos se poderiam seguir. Sobre cada um deles há que tomar posição. Defender que o BE ou o PCP podem sustentar um novo governo de José Sócrates sem questionar a orientação política da governação, só pode fazer sentido para quem gostaria de ver os partidos à esquerda do PS cometer suicídio na praça pública.

Durante mais de quatro anos, o PS governou à direita. Vai agora “manter o rumo”, como disse José Sócrates depois das europeias, ou está disponível para assumir uma nova orientação política? Para falar com toda a sinceridade, temo o pior. Os entendimentos de Sócrates com a direita parecem-me bem mais fáceis de alcançar. O CDS-PP exige a cabeça do ministro da agricultura, cortes no RSI, mais polícias na rua e a revisão das leis criminais… Porque não? O PSD quer reduzir a divida pública, desinvestindo na Saúde, na Educação e na Segurança Social… Mas não foi isso aquilo que o PS já fez na primeira fase da vida do governo anterior?

Vamos admitir que estou enganado. Veremos. A iniciativa cabe ao PS. Os apoios que o novo governo procurar na próxima legislatura serão esclarecedores acerca da orientação política que resolveu adoptar: “diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és”.

P.S. O texto do referido "Apelo", que já conta com centenas de assinaturas de apoio, pode ser consultado em http://www.compromissoaesquerda.com/.

Sem comentários:

Enviar um comentário