sexta-feira, 23 de julho de 2010

A revisão constitucional
Entre o neoliberalismo e a defesa do Estado social

“É necessário libertar a Constituição da sua carga ideológica”. Esta é uma afirmação recorrente no discurso dos partidos da direita em tempos de revisão constitucional. Passo mentalmente em revista várias Constituições. A Constituição liberal de 1822, a Carta Constitucional de 1826, a Constituição setembrista de 1838, o Acto Adicional de 1852, a Constituição republicana de 1911, a Constituição de 1933 que institui o Estado Novo... Não encontro nenhum exemplo despido de “carga ideológica”. Todas reflectem o corpo de ideias dominantes no seu tempo e nenhuma estipula regras gerais supostamente independentes da correlação política de forças existente na época em que vigoraram. De facto, todas elas surgiram na sequência de revoluções, guerras civis, golpes de Estado, e foram a expressão legal das mudanças originadas por actos de força que deixaram no campo da luta política vencedores e vencidos. A neutralidade dum texto constitucional é uma ficção.

A Constituição de 1976 não é excepção. Aprovada pelo PS, pelo PPD e pelo PCP, exprime, sem dúvida, o “espírito do tempo” ao definir a sociedade portuguesa como uma democracia política, económica, social e cultural, a caminho do socialismo.

Evidentemente, o conceito de “socialismo”, não tinha para todos aqueles partidos o mesmo significado. O PCP defendia que, em Portugal, era impossível a consolidação duma democracia do tipo ocidental e a Constituição lançava as bases do que poderia ser uma “democracia avançada” que, apesar do desmentidos de Cunhal (“Olhe que não! Olhe que não!”) tanto o PS como o PSD associavam às “democracias populares” do Leste. Para estes partidos, “socialismo” era sinónimo de social-democracia.

A Constituição foi aprovada já depois do 25 de Novembro. O PCP encontrava-se isolado, numa posição defensiva dificilmente sustentável e as revisões constitucionais que se seguiram trataram de eliminar todas as dúvidas. Acabou-se com o Pacto MFA-Partidos e com o Conselho da Revolução e a irreversibilidade das chamadas “conquistas da revolução” (as nacionalizações, a reforma agrária) acabou por ser expurgada do texto constitucional.

A Constituição passou claramente a exprimir a vitória daqueles que entendiam a democracia nos moldes dos regimes dominantes na Europa Ocidental. Contudo, a vertente social-democrata manteve-se, por exemplo, na definição dum SNS universal e tendencialmente gratuito.

É precisamente isso que agora se questiona com a proposta de revisão constitucional avançada pela equipa de Passos Coelho que põe em causa o princípio da universalidade e da gratuitidade do ensino e da saúde públicas.

Sempre em nome da desideologização do texto constitucional, o PSD, que já foi socialista e social-democrata, apresenta-se agora como neoliberal. Não estará a interpretar correctamente o novo “espírito da época”? Uma revisão constitucional exige 2/3 dos votos dos deputados da AR. A resposta está, portanto, nas mãos do PS que, até agora, se tem desmultiplicado em afirmações de repúdio das propostas de Passos Coelho.

Contudo, todos nós sabemos que aquilo que não pode entrar pela porta da frente, acaba muitas vezes por entrar pela das traseiras. Nos últimos anos, com um progressivo aumento das propinas, verificamos que a frequência do ensino superior se encontra cada vez mais condicionada por factores de ordem económica. No ensino básico e secundário, à degradação da qualidade do ensino público tem correspondido o reforço do ensino privado, reservado a uma elite económica e social. Na Saúde, multiplicaram-se as Parcerias Público-Privadas, as taxas moderadoras e tem crescido a percentagem dos portugueses que, seduzidos pelas deduções em sede de IRS, cansados das listas de espera e procurando um maior conforto em situações de doença, estão a ser empurrados para contratos com seguradoras associadas a clínicas privadas, com benefícios clínicos muito duvidosos.

As propostas de Passos Coelho não introduzem novidades absolutas, mas limitam-se a radicalizar uma tendência que se tem afirmado nos últimos anos e com a qual o PS tem estado comprometido. Compete à esquerda assumir uma defesa intransigente do Estado social, rejeitando quaisquer medidas que visem a descapitalização e desvalorização de serviços públicos fundamentais, remetendo-os para uma função assistencial reservada aos sectores mais pobres da população. Se o souber fazer, talvez o PSD tenha perdido aqui a possibilidade de regressar ao poder com uma maioria absoluta que parecia ir cair-lhe no colo.

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