ALBERT CAMUS (1913-1960)
Quando comecei a escrever neste blogue, redigi o meu “perfil”. Não foi fácil escolher o filme ou o livro preferido. Mas não hesitei um segundo quando escolhi o meu herói – Sísifo. E é claro que, por trás do herói grego, encontrava-se um outro herói, francês e argelino, e um ensaio, O Mito de Sísifo, que resume aquilo que penso ser a minha condição de homem de esquerda.
Camus foi, na minha adolescência, um autor de cabeceira. Julgo que, com 17 anos, já teria lido os romances e contos até então publicados pela Livros do Brasil. E, mais tarde, regressei ainda a Camus, uma e outra vez, embora deva dizer que, para mal dos meus pecados, nem sempre o tenha compreendido e nem sempre lhe tenha sido fiel. A vida encarregar-se-ia de me corrigir e de lhe dar razão. E é assim que a cerca de dois meses do 50º aniversário da sua morte (e cerca de quinze dias depois do 20º aniversário da queda do Muro de Berlim), lhe presto homenagem recordando aqui as reflexões políticas que nos deixou em O Homem Revoltado.
Na data da sua publicação, em 1951, dificilmente um intelectual “de esquerda” poderia dizer sem mentir que desconhecia que o crime cometido por muitos daqueles que Estaline havia condenado à morte se resumia ao da divergência política. Mas, para muitos, milhares de revolucionários assassinados seriam um preço aceitável quando aquilo que se comprava era o futuro radioso prometido pela Revolução.
“Há crimes de paixão e crimes de lógica”, diz-nos Camus a abrir o seu livro. E continua: Hoje, “vivemos no tempo da premeditação e do crime perfeito”, o seu álibi é a filosofia “que pode servir para tudo, até para transformar os assassinos em juízes” (Albert Camus, O Homem Revoltado. Lisboa: Livros do Brasil, 2003 p. 9). E mais adiante: “Nos tempos ingénuos em que o tirano arrasava cidades para sua maior glória, em que o escravo, atado ao carro do vencedor, desfilava nas cidades em festa, em que o inimigo era lançado às feras perante multidões aglomeradas; perante crimes de uma tal candura, a consciência podia manter-se firme e o raciocínio lúcido. Mas os campos de escravos sob o estandarte da liberdade, os massacres justificados pelo amor do homem ou pelo gosto de uma super-humanidade, perturbam num sentido o julgamento” (Idem, p. 10). E define assim o seu tema: “”No tempo da negação podia ser útil interrogar-se cada um sobre o problema do suicídio. Na época das ideologias é preciso estar em regra com o homicídio” (Idem, p. 10).
Coexistem no marxismo uma vertente crítica e uma dimensão profética. Marx fez uma análise justa e impiedosa do capitalismo, mas só podia referir-se à revolução deduzindo a partir das experiências vividas possibilidades futuras. Da crítica do capitalismo passa, assim, à previsão dos processssos que conduziriam à sua derrocada e à afirmação da inevitabilidade da utopia comunista.
“Pode dizer-se”, afirma Camus, “que a maior parte das suas predições se chocou com os factos, ao mesmo tempo que a sua profecia se tornou objecto de uma fé cada vez mais fortalecida. Facilmente se compreende o porquê do facto: as predições eram a curto prazo e podiam ser controladas. A profecia é feita a longo prazo e tem a seu favor aquilo que sustenta a solidez das religiões: a impossibilidade de obtenção de provas” (Idem, p. 226).
Camus radica a profecia marxista do comunismo na conjugação duma visão teleológica da histórica de raiz judaico-cristã com a crença iluminista no Progresso. Para os cristãos, todos os sacrifícios sofridos durante a nossa existência terrena seriam recompensados pela conquista do Céu. Para a burguesia, para quem o progresso tecnológico se traduzia em enriquecimento material, a miséria a que a Revolução Industrial condenava a classe operária, justificava-se pela certeza de que o dia de amanhã seria melhor. “O futuro”, diz-nos Camus, “é a única espécie de propriedade que os senhores concedem de bom grado aos escravos” (Idem, p. 233).
É verdade que a acção política se projecta necessariamente no futuro. E como, ao contrário dos marxistas “oficiais”, não acredito na possibilidade de o prever cientificamente, parece-me que a crença na validade das nossas opções lhe está pressuposta. Mas quando adiamos a possibilidade de avaliar a sua justeza para um tempo que já não será o nosso, reclamamos ser julgados apenas em nome das nossas auto-proclamadas boas intenções, em vez de sermos confrontados com os resultados que efectivamente resultaram dos nossos actos.
Ora, como afirma Jean Daniel, com Camus tomamos consciência da nossa condenação a viver no presente. “Camus foi certamente o primeiro, no século XX, a ter profetizado a época em que já não poderíamos apoiar-nos nos modelos do passado, em que já não poderíamos refugiar-nos nos projectos do futuro, em que seríamos obrigados a ter uma vida na vertical, com uma lucidez constante e quase inumana sobre um destino que se joga a cada segundo” (Jean Daniel, Com Camus, Como aprender a resistir. Lisboa: Temas e Debates, 2009, p. 135).
A concepção da Utopia como o fim da História, como a redenção final da humanidade num mundo sem mácula, relativiza todas as iniquidades que possam ser cometidas em seu nome. Que importância pode ter o Gulag se, sobre o sacrifício dos milhões de deportados, se há-de construir o Mundo Novo?
Penso que a esquerda, mobilizada em torno dos grandes ideais da Liberdade, da Igualdade e da Fraternidade, precisa de uma bússola que lhe indique um rumo e é justo que adopte a Utopia como o seu Norte. Desde que saiba que nenhuma etapa percorrida será a última, mas o início de uma nova caminhada. Num trabalho incessante e sem fim – como o de Sísifo.
E que compreenda, com Ernestan, um ensaísta libertário citado por Camus, que “se o socialismo é um perpétuo devir, os seus meios são os seus fins” ( Ob. Cit., p. 267).
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