sábado, 20 de abril de 2013



No 40º aniversário do PS

O Partido Socialista foi fundado há 40 anos, em Bad Münsterereifel (Alemanha). Embora tenha a sua origem na Acção Socialista Portuguesa, fundada dez anos antes, penso que podemos afirmar que o PS, tal como o conhecemos hoje, nasceu com o 25 de Abril. De facto, antes disso, e apesar dos longos anos de resistência anti-fascista protagonizados pelos seus fundadores, a ASP e o PS eram organizações políticas frágeis, com muito poucos militantes, fundamentalmente intelectuais e profissionais liberais, com uma acção política intermitente e uma implantação social reduzida. Além disso, e ao contrário de outros partidos social-democratas europeus, o PS não emanava de um passado de luta operária e sindical, mas tinha a sua origem na classe média.

No entanto, logo após o 25 de Abril, o Partido transformou-se rapidamente no maior partido português. Este rápido crescimento explica-se pelo facto do PS ter ocupado naturalmente um grande espaço político deixado livre à esquerda pelo PCP e pelos vários partidos da extrema-esquerda, que se apresentavam ao eleitorado como defensores de experiências totalitárias (soviéticas, chinesas, albanesas, cubanas, etc.) que este maioritariamente rejeitava.

Pelo contrário, para a grande maioria desses eleitores, a ideia de uma “boa sociedade” estava associada ao conhecimento que tinham (até mesmo pela própria experiência dos emigrantes) dos países da Europa Ocidental, então, na sua maioria governados por partidos da família política do PS.

O crescimento exponencial do PS fez-se, portanto, à margem do movimento sindical (controlado pelo PCP) e contra os projectos revolucionários surgidos no pós-25 de Abril, no âmbito do PREC. Por outro lado, traduziu-se na adesão de muitos milhares de militantes, sem experiência política nem formação ideológica, em boa parte oriundos de uma pequena-burguesia que via na militância partidária uma oportunidade de ascensão social.

Muitos observadores, tanto `de direita como de esquerda, têm insistido nesta imagem do PS como um partido de carreiristas sem princípios políticos consistentes, fundamentalmente motivados por interesses egoístas. A validade política deste julgamento moral é, no entanto, questionável, não só porque é abusivamente generalizadora, mas também na medida em que ele só nos permitiria distinguir o PS de outros partidos se fossemos capazes de provar que em mais nenhum se encontram casos semelhantes de instrumentalização do poder político para satisfação de ambições pessoais.

Como não acredito que nenhum partido, à esquerda ou à direita, tenha o monopólio da virtude, julgo ser mais prudente ficar pela ideia do PS como um partido que protagoniza fundamentalmente os ideais de promoção social da pequena-burguesia e que representa, de facto, grande parte dos trabalhadores portugueses, avessos a aventuras revolucionárias, mas apoiantes das reformas sociais que lhe garantam a capacidade de consumir certos bens materiais que durante muito tempo lhes estiveram vedados, bem como o acesso ao ensino, à saúde pública, à protecção social no desemprego e na velhice.

Em que medida podemos, então, considerar o PS um partido socialista?

Apesar disto não se encontrar claramente explicitado nos seus documentos fundadores, podemos afirmar que os fundamentos ideológicos do PS não se encontram em Marx, mas em Bernstein. Ou seja, o seu socialismo é considerado como uma extensão do conceito de democracia, que não pode ser reduzida à defesa da igualdade de direitos políticos (defesa das liberdades básicas e sufrágio universal) ou à igualdade de oportunidades (defesa de carreiras abertas a todos, sendo valorizado apenas o mérito de cada um), mas supõe o de “igualdade democrática” (defesa de uma redução das desigualdades sociais de tal forma que grandes diferenças de riqueza não possam traduzir-se em desigualdade de oportunidades e em desigualdade política de facto).

É, portanto, em nome da igual dignidade de todos os cidadãos que o socialismo democrático (ou a social-democracia) defende uma redistribuição da riqueza através de impostos fortemente progressivos e a instauração de um “Estado social” que funcione como garantia do acesso efectivo de todos à educação e à saúde, a um subsídio em situação de desemprego e a uma reforma digna. Ao mesmo tempo, em vários países europeus, a social-democracia esteve associada a um programa de nacionalizações de sectores da economia prestadores de serviços essenciais e a medidas que visavam reforçar a intervenção do papel do Estado na regulação dos mercados.

Penso que podemos situar nesta linha de conduta muitas das medidas tomada por governos liderados pelo PS. É o caso da criação do SNS (governo de Mário Soares) do Rendimento Mínimo Garantido (governo de António Guterres) ou do Complemento Solidário para Idosos (governo de José Sócrates). Além disso, a escolaridade obrigatória alongou-se até ao 9º ano e o número de estudantes que passaram a frequentar o ensino superior cresceu muitíssimo do 25 de Abril para cá, existindo hoje muitos licenciados cujos pais não têm mais do que a 4ª classe. Aliás, muitas das medidas que afectaram positivamente a educação e a saúde públicas, bem como a segurança social, tornaram-se consensuais na sociedade portuguesa e não podem ser atribuídas exclusivamente à acção dos governos socialistas.

Por outro lado, o PS consolida-se como partido de poder numa época de afirmação da “terceira via” defendida por Tony Blair e por Anthony Giddens, na sequência da ofensiva neoliberal que se segui ao choque petrolífero dos anos 70 e culminou com a queda do Muro de Berlim. A influência destas ideias, que se tornaram dominantes nos partidos da II Internacional, começaram a fazer-se sentir entre os socialistas portugueses a partir do governo de Guterres e manifestaram-se, nomeadamente, no abandono das concepções igualitárias presentes na social-democracia clássica. O projecto socialista de redução das desigualdades sociais foi substituído pela defesa de uma safety net capaz de prevenir casos de extrema pobreza. O fosso social que separa os mais ricos e os mais pobres, longe de diminuir foi crescendo, situando-se Portugal no 3º lugar dos países da EU onde essas diferenças são mais profundas.

Neste sentido, se considerarmos como Norberto Bobbio, que aquilo que distingue a esquerda e a direita é a importância relativa dada ao princípio da igualdade, então temos que considerar que os cerca de 20 anos em que o PS esteve no governo do 25 de Abril para cá não podem ser avaliados positivamente.

Actualmente, o PS encontra-se numa encruzilhada. A “terceira via” falhou o seu propósito de se apresentar como alternativa entre a social-democracia clássica e o neoliberalismo. O relativo consenso político que perdurava em torno da defesa das funções sociais do Estado entre o PS e o PSD foi quebrado pelo governo de Passos Coelho que, em nome de uma suposta maior eficiência económica, defende a privatização ou a concessão a privados da exploração de serviços públicos e considera que o SNS, a escolas pública e o actual sistema de segurança social são “insustentáveis”. Aliás, a Troika impõe-nos um programa de resgate que passa por um processo de empobrecimento que ameaça prolongar-se por décadas, o que põe, de facto, em causa a sustentabilidade do Estado social.

Desta forma, escudado nas obrigações que nos são impostas pelo "memorando", o neoliberalismo tenta concretizar o seu ideal de um "Estado mínimo", restringido às suas funções básicas de segurança e justiça, às quais se somariam funções assistencialistas reservadas à protecção dos mais pobres.

Nestas condições, a reafirmação da matriz social-democrata do PS exige uma política de corajosas rupturas com a situação existente. Talvez não seja fácil assumi-las, mas dificilmente o eleitorado socialista aceitará que um próximo governo socialista seja apenas uma versão light do actual governo PSD/CDS. Se assim for, o PS arrisca-se à irrelevância e à decadência. Os exemplos do PASOK e do PSOE deviam estar presentes na memória dos socialistas nesta hora de importantes decisões.

domingo, 14 de abril de 2013




Uma leitura indispensável (2ª parte)

Como vimos na 1ª parte deste texto, a entrada de Portugal na zona euro teve como resultado uma perda de competitividade das indústrias nacionais, uma balança comercial muito deficitária e a acumulação de uma grande dívida externa. Em 2007, a estrutura produtiva nacional encontrava-se completamente distorcida e centrada na produção de bens não transaccionáveis. A grande maioria do emprego concentrou-se na construção civil, no comércio e nos serviços. Por outro lado, a baixa taxa de juros favoreceu o endividamento crescente de famílias e empresas. Com o eclodir da crise internacional de 2008, o acesso ao crédito tornou-se muito mais difícil, arrastando famílias, empresas e, por fim, o próprio Estado, para uma situação de insolvência.

Portugal viu-se obrigado a pedir um resgate financeiro ao FMI, à CE e ao BCE. O memorando assinado com a troika pretende reduzir simultaneamente o défice privado e o défice público. Ora, esses dois objectivos contradizem-se.

Uma vez que a nossa integração na moeda única não nos permite levar a cabo uma desvalorização cambial, a correcção do défice da balança comercial fez-se pela forte redução do consumo das famílias e da procura interna. Este processo de “empobrecimento” tem-se reflectido, de facto, na diminuição das importações. Mas, ao mesmo tempo, provocou a retracção dos investimentos, a recessão e o crescimento do desemprego e, portanto, a descida das receitas fiscais e o aumento das prestações sociais (nomeadamente, em matéria de subsídios de desemprego). Por outro lado, como se sabe, a tentativa de corrigir o défice público aumentando impostos e reduzindo a despesa com a segurança social apenas se tem traduzido num aumento progressivo de situações de pobreza e no aprofundamento da recessão. Ou seja, a correcção do défice privado pela via da austeridade acaba por se traduzir num agravamento do défice público.

Por sua vez, a troika e o governo reagem ao agravamento do défice público com novas medidas de austeridade e caímos assim num círculo vicioso que apenas pode resultar num processo de empobrecimento e de destruição progressiva do Estado social, acompanhada por um endividamento crescente e pela mais completa submissão dos interesses nacionais aos interesses dos nossos credores.

Segundo João Ferreira do Amaral (JFA), a alternativa inteligente à política da austeridade seria a de reduzir gradualmente os défices, visando metas razoáveis, alcançáveis sem comprometer o crescimento económico.

Para o efeito, tem havido quem defenda uma solução federalista, da qual JFA discorda, considerando que essa solução condenaria definitivamente Portugal à perda da sua identidade nacional e à sua transformação numa simples região economicamente subdesenvolvida e subsidiodependente. Além disso, não acredita na possibilidade dos países do Norte se encontrarem na disposição de sustentar indefinidamente as economias anémica dos países regiões periféricas do Sul da Europa. Seja como for, a possibilidade de Portugal, integrado numa Europa federal poder influenciar minimamente as decisões políticas adoptadas seria mínima.

Aliás, isso já acontece actualmente, em particular após a assinatura do Tratado de Lisboa, que autoriza a Comissão Europeia a tomar decisões que vinculam todos os Estados da UE, abdicando da regra da unanimidade e substituído-a pela das maiorias qualificadas.

Na prática, a partir de 2008, aquilo que se verificou foi a perda da autonomia da CE, presidida por Durão Barroso, e a sua completa dependência das decisões adoptadas pelo governo alemão. Esta situação agravar-se-ia no quadro de uma Europa federal.

Na opinião de JFA, aquilo que nos interessa não é o federalismo, mas uma solução confederal, onde os Estados representados poderiam adoptar políticas comuns sem perder a identidade e autonomia que lhes são próprias. Nomeadamente, poderiam relacionar-se directamente com países terceiros e outras associações internacionais da forma que melhor servisse os seus interesses.

Contra o seguidismo dominante, baseado no princípio absurdo de que não há divergências entre os interesses de Portugal e os dos países economicamente mais desenvolvidos do Norte da Europa, adoptar-se-ia uma estratégia de "distanciamento"  do tipo daquela que tem sido seguida pelo Reino Unido. No plano das relações comerciais, actualmente, a esmagadora maioria das exportações portuguesas têm como destino países da UE, sendo correcto valorizar, como aliás já se vai fazendo, as alternativas oferecidas pelos mercados das Américas, de Angola, da China e de outros países do Extremo-Oriente. No plano monetário, JFA defende um novo Sistema Monetário Europeu, ou seja, um SME que resultasse de uma revisão daquele que vigorava antes da criação do euro, onde cada país da UE emitiria moeda própria, comprometendo-se com uma banda de flutuação mais apertada do que a de 15% instituída em 1993, e criando-se uma instituição monetária que salvaguardasse a estabilidade do sistema.

Actualmente, a percentagem do PIB  português originado na indústria é de 15% e de 2% na agricultura. Esta situação compromete irremediavelmente o nosso futuro. Na opinião de JFA, a “prioridade das prioridades” deve ser a de promover um processo de re-industrialização. Ora, isso só será possível como resultante de um verdadeiro “choque competitivo”. Ou seja, ter-se-á que passar, necessariamente, por uma desvalorização cambial apenas possível com a emissão de uma moeda própria.

Assim, JFA, que sempre se opôs à adesão de Portugal ao euro e que soube prever as consequências nefastas dessa decisão num momento em que ela era quase unanimemente saudada como a via incontestável para o progresso, considera agora que a saída do euro (e não necessariamente da UE) é o único caminho que nos resta para salvarmos o país de décadas de empobrecimento e dependência externa.

Aliás, pensa mesmo que a recessão económica a que a política austeritária imposta pela troika e o consequente agravamento do défice acabará por nos conduzir inevitavelmente para fora da zona euro. Contudo, considera que seria desastroso sermos empurrados pela força das circunstâncias a sair precipitadamente da moeda única. Em vez disso, propõe-nos uma saída controlada e negociada entre as autoridades nacionais e as autoridades comunitárias.

Concretamente, defende que devem estar asseguradas cinco condições que enuncia  nas páginas 117-118 do livro citado. Destaco aqui a garantia de que os depósitos bancários manteriam o seu valor em euros; o aumento das dívidas das famílias e das empresas à banca que resultasse da desvalorização da nova moeda seria coberto pelo Estado português através de um empréstimo contraído junto do Banco de Portugal; o governo, ajudado pelo BCE, manteria a nova moeda numa banda de flutuação de 15% em relação ao euro, garantindo que a sua desvalorização se fizesse de forma progressiva; e seria contraído um novo empréstimo que nos permitisse honrar a dívida pública até que se começassem a sentir os efeitos positivos da saída do euro no reequilíbrio das contas externas.

Sendo que a alternativa seria o incumprimento e a bancarrota, JFA pensa que um acordo nestes termos seria aceitável pelas instituições europeias, uma vez que todas as partes sairiam a ganhar. Evidentemente, não ignora os riscos inerentes à solução proposta. Mas, como afirma, também uma cirurgia implica riscos, mas é, por vezes, indispensável no tratamento de certas doenças.

sexta-feira, 12 de abril de 2013




Uma leitura indispensável (1º parte)

O Tratado de Maastricht foi aprovado em Dezembro de 1991 e Portugal decidiu incluir-se no “pelotão da frente” dos países que decidiram criar o euro, tendo concluído o seu processo de adesão oito anos depois. Essa decisão foi tomada por maioria qualificada na AR (votos do PSD, do PS e do CDS). Assim, em 1999, acabou o escudo e, portanto, a possibilidade de Portugal ter uma politica monetária autónoma. Os deputados que votaram “Sim” estavam mandatados para representarem o povo enquanto entidade soberana, mas não para abdicar de um instrumento da soberania que lhes tinha sido confiada. Contudo, esta decisão foi tomada sem recurso a consulta popular através de referendo. Como foi isto possível? Afinal, não tínhamos nenhum exército inimigo às portas, pronto para invadir o país… É esta a pergunta que nos faz João Ferreira do Amaral no seu último livro, Porque devemos sair do euro.

O livro de JFA não se dirige a economistas, mas a um público não especializado. São pouco mais de cem páginas de uma escrita clara e aliciante que, nas circunstâncias actuais, se tornaram de leitura indispensável. A título de introdução, deixo aqui, um resumo de algumas das teses defendidas pelo autor. Para maior comodidade dos leitores, dividi este texto em duas partes.

Comecemos por uma ideia elementar: Ter moeda própria é uma condição necessária para ter uma política monetária autónoma, ou seja, de usar a possibilidade da sua (des)valorização cambial para equilibrar a balança comercial com o exterior, ou para combater a inflação, ou para promover o crescimento económico.

Por isso, qualquer novo Estado independente cria a sua própria moeda. Apenas alguns liberais como Hayek, que confiam em absoluto nas virtudes auto-reguladoras do mercado, consideram que o Estado se deve abster de usar a moeda como um instrumento da política económica.

Assim, como diferentes economias nacionais enfrentam problemas distintos, cada Estado adopta a política monetária que melhor se acorda com a conjuntura económica e com os seus próprios objectivos.

A adopção por parte de um conjunto de Estados de uma moeda única priva-os dessa possibilidade. Isso poder-se-ia justificar se todos eles estivessem inseridos num espaço económico homogéneo, quer dizer, se todos enfrentassem os mesmos problemas e tivessem objectivos comuns. Como não é esse o caso da zona euro, a política monetária comum é necessariamente desenhada de acordo com o interesse de alguns deles e prejuízo dos outros.

A condição fundamental da homogeneidade reside na competitividade das diferentes economias nacionais. Avaliámo-la em função do peso relativo das exportações e das importações e da produção de bens transaccionáveis e não transaccionáveis, sendo que uma economia não é competitiva se se verificar um peso excessivo dos segundos termos daquelas equações. Por sua vez, a competitividade económica depende da qualidade daquilo que é produzido, da inovação e da relação preços / produtividade / recursos.

No caso português, a competitividade está sobretudo associada aos preços (que, note-se, não são exclusivamente nem fundamentalmente determinados pelos salários, como muitas vezes se pretende, mas, de uma maneira geral, pelos chamados "custos de contexto", que incluem as despesas com energia, transportes, matérias-primas, etc.). Daí, a importância de adoptar uma política monetária que favoreça a sua descida. A adopção de o euro, uma moeda forte, associada aos efeitos da globalização, provocou uma perda de competitividade que se traduziu no desequilíbrio da balança comercial (e, portanto, num acelerado processo de endividamento).

O euro é uma moeda forte porque foi criada à imagem do marco. Foi essa a condição imposta pela Alemanha para a sua adesão à moeda única, aceite pela França de Mitterrand que pensava que assim poderia “domesticar” o peso excessivo da Alemanha reunificada na Europa. Ora, a RFA teme acima de tudo a inflação e possui uma economia cuja competitividade se baseia fundamentalmente na qualidade e na inovação. Poder-se-á contra-argumentar afirmando que a integração de Portugal no euro visava precisamente uma evolução da nossa economia neste mesmo sentido. Contudo, a modernização do nosso tecido industrial e da nossa agricultura só pode realizar-se controlando as chamadas “despesas de contexto”, o que exige precisamente a adopção de uma política monetária adequada. Nas circunstâncias impostas pela nossa integração na zona euro, aquilo que ocorreu naturalmente foi um processo de transferência de capitais para a produção de bens não transaccionáveis (em particular, para a construção civil). Os investidores nacionais defenderam-se, assim, da concorrência de produtos que chegavam ao mercado nacional com preços muito baixos e assistimos a um processo acelerado de desindustrialização.

De facto, este processo iniciou-se logo que a adesão ao euro ficou decidida, impulsionado pela implementação das medidas de convergência exigidas, nomeadamente a de redução da inflação para o ritmo dos três países aderentes com menor inflação, o que se fez aumentando as taxas de juro de forma a reduzir o acesso ao crédito e a desacelerar a procura interna. A inflação desceu, mas o preço que pagamos por um escudo forte foi uma perda de competitividade, traduzida num progressivo decréscimo do peso da indústria e da agricultura no PIB.

A situação agravou-se com a adopção da moeda única em 1999. Então, a descida das taxas de juro e facilidades de financiamento sem precedentes favoreceram o apelo ao consumo, que conduziu a um progressivo endividamento das famílias. Além disso, o abandono da indústria e a aposta no investimento em bens não transaccionáveis, resultou num rápido aumento das importações e numa subida astronómica do défice da balança comercial.

A crise internacional de 2008 iniciou-se com a falência do Lehman Brothers. Na sequência disso, muitos outros bancos só conseguiram sobreviver à custa de avultados financiamentos públicos. Instalou-se um clima de desconfiança que conduziu à retracção do crédito e à recessão económica. As consequências sociais da crise obrigaram os Estados a aumentar a despesa pública, agravando os seus défices orçamentais. Além disso, tentaram, correctamente, contrariar a tendência recessiva com a promoção de obras públicas.

Contudo, impedidos de se financiar emitindo moeda e encontrando-se o BCE proibido de emprestar dinheiro aos Estados, as dificuldades financeiras atingem os países com economias mais frágeis, com grandes défices externos, como é o caso de Portugal, que se vê à beira da bancarrota.

É neste contexto que surgem os pedidos de ajuda externa junto do FMI, da CE e do BCE. Mas das condições de concessão dos empréstimos obtidos junto dessa troika e das suas consequências, trataremos na 2ª parte deste texto.