quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Maio de 68 – trinta e dois anos depois

Realizou-se na Universidade do Minho um colóquio sobre, os acontecimentos de Maio de 68 em França, com a presença do Professor Carlos Silva e de Manuel Afonso, activista estudantil da Universidade de Coimbra. Há dois anos, realizou-se também aqui uma outra conferência sobre o mesmo tema, onde esteve presente Francisco Louçã. Compreendo que haja sectores da esquerda interessados em reviver esses tempos, tanto mais que o movimento estudantil parece atravessar, em Portugal, por uma fase de apatia e conformismo, precisamente numa altura em que tantas conquistas democráticas se encontram hoje ameaçadas nas Universidades portuguesas. No entanto, passados mais de trinta anos, terá chegado a altura ultrapassar a visão romântica das barricadas do Quartier Latin, para olhar de uma forma mais fria e distanciada sobre aqueles acontecimentos e tentar perceber o seu significado no contexto da história recente da Europa e do mundo.
Comecemos por nos situar. Antes de 68, ficaram os “trinta gloriosos”, as três décadas que se seguiram ao fim da 2ª Guerra Mundial – anos de crescimento económico e, ao mesmo tempo, de diminuição do fosso entre ricos e pobres. O mito do mercado auto-regulado desfez-se com a crise dos anos 30. O Estado passou a intervir na vida económica, praticou-se uma política de impostos altamente progressiva e o Estado-Providência impôs-se por toda a Europa ocidental. O ensino público, a saúde pública, a protecção da segurança social, na reforma e no desemprego, que os seus pais alcançaram, tornaram-se factos adquiridos para os jovens dos anos 60.
E, no entanto, dizia-se: “a França aborrece-se”. O Estado surge aos olhos das novas gerações como uma réplica da autoridade familiar: paternalista, conservadora, castradora da livre expressão individual, desse apelo romântico para um mundo novo, onde fosse “proibido proibir”. A revolta estudantil nasce, antes de mais, de um conflito de gerações. De facto, as diferenças de gosto e os hábitos comportamentais, a música, o vestuário, a linguagem, exprimiam já desde os inícios da década um conflito latente a que a crise de 68 acabou por dar expressão política.
É verdade que diferentes correntes políticas e ideológicas puderam ter então o seu protagonismo. Maoístas, trotskistas, guevaristas… Mas parece-me que foi dominante, em 68, uma vertente libertária. Aquilo que estava em jogo não era um projecto de emancipação colectiva, mas sobretudo projectos de emancipação individual. Por isso, o relevo assumido pela “revolução sexual”. Wilhelm Reich ressuscitou dos mortos para se tornar “leitura obrigatória”.
Entretanto, a velha esquerda encontrava-se neste ambiente como um peixe fora da água. O princípio da submissão dos interesses individuais aos interesses colectivos, que se traduzia na acção disciplinada das massas sob a orientação de porta-vozes autorizados era tido agora como “repressivo”. A nova esquerda afirmava-se na defesa das minorias e de causas identitárias – identidade sexual, racial, cultural, etc. Anteriormente, pensava-se que aquilo que era bom para a colectividade seria necessariamente bom para cada um. A partir de agora defende-se que ninguém tem o direito de escolher por nós a vida que preferimos viver. Aquilo que importa é a defesa intransigente da nossa “diferença”.
Qualquer semelhança entre estas ideias e as de uma nova direita neoliberal que despontava e acabaria por se afirmar hegemónica a partir dos meados dos anos 70 não é pura coincidência. Parece-me que muitos dos esquerdistas de então se transformaram em admiradores incondicionais de Isaiah Berlin, uns anos mais tarde, sem precisarem de ter traído, nesse percurso, as suas convicções mais profundas.
Que balanço podemos, então, fazer do Maio de 68? Haverá sempre incorrigíveis nostálgicos da velha receita leninista que afirmam que a revolução fracassou pela ausência de uma vanguarda revolucionária capaz de conduzir as massas à vitória. Permito-me discordar. Em primeiro lugar, se essa “vanguarda” não existiu foi porque nunca foi desejada. Em segundo lugar, a revolução não fracassou no âmbito onde se travaram, de facto, os grandes combates, no plano da cultura e das mentalidades. Os anos 60 não deixaram “pedra sobre pedra” dos valores éticos e comportamentais onde assentavam as sociedades do pós-guerra.
Hoje vivemos num mundo radicalmente diferente. O proletariado industrial é uma classe minoritária. Um sector terciário cada vez mais pulverizado tornou-se dominante. O individualismo campeia e a direita neoliberal ditas as suas regras como se leis da natureza se tratassem. As ameaças que pesam sobre o que resta do Estado-Providência não cessam de aumentar, invocando-se duvidosos critérios de rentabilidade económica. Entretanto, o fosso entre ricos e pobres, mesmo nos países economicamente mais desenvolvidos, não deixa de se alargar.
Nestas circunstâncias, será a esquerda capaz de reinventar novos projectos colectivos susceptíveis de inverter a situação? As questões que se nos colocam são afinal as de sempre: Como conjugar a liberdade com a igualdade, a democracia política com a justiça social? Será que as lições de Maio de 68 nos vão ajudar a encontrar uma resposta?

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