O blogue de Carlos Santos, O valor das ideias, tem assumido, em plena silly season (quando a história da troca das bandeiras se tornou no asssunto do dia), a virtude rara de se deter na análise dos programas eleitorais dos diferentes partidos. Em causa têm estado o do Bloco e o do PS. Quanto ao do do PSD, que continua no segredo dos deuses, a sua análise só pode basear-se naquilo que julga possível ler nas entrelinhas das declarações de Manuela Ferreira Leite e de outros dirigentes social-democratas. O programa do CDS ainda não foi apresentado e o do PCP só o foi muito recentemente.
Não questiono a utilidade desse trabalho ao qual muito poucos se têm dedicado. Nem vou exigir a ninguém análises que excluam a argumentação a favor das suas opções eleitorais. Porém, conhecidas essas opções, não posso deixar de notar que, num contexto pré-eleitoral, é muito fácil passar da leitura dos programas para uma dramatização das diferenças que neles se podem descobrir, o que por vezes implica agitar improváveis ameaças futuras vindas da “oposição” e esquecer desagradáveis realidades presentes que responsabilizam o actual governo. Carlos Santos nem sempre consegue fugir a esta tentação.
De facto, não sendo previsível que das próximas eleições resultem maiorias absolutas, nenhum dos programas em análise vai ser aplicado tal como agora se apresenta. Os partidos sabem-no e isso deixa-os também à vontade para neles prometerem aquilo que (por causa dos “outros”, é claro) sabem que nunca poderão cumprir. Vivemos um tempo de vésperas. A crua realidade acabará por impôr-se, obrigando a que se venham a procurar consensos onde hoje se perfilam contradições insanáveis. E a questão fundamental passará a ser “como e com quem essas convergências se vão fazer”.
Não me parece que a revisão do Código de Trabalho, nos termos em que é reclamada pelo BE e pela CDU, dependa de uma vitória eleitoral do PS e ou do PSD. Ou que a nacionalização da GALP e da EDP, pedida pelo Bloco, possa ser decidida por uma qualquer maioria parlamentar saída das próximas eleições. Nestas, como em muitas outras matérias, as divergências entre o PS e o PSD vão apagar-se e continuarão a perdurar as posições do “bloco central”.
E, sinceramente, não creio que a continuidade das medidas positivas tomadas pelo actual governo no âmbito da promoção das energias renováveis possam ser postas em causa pelos próximos resultados eleitorais. Há áreas de consenso nestas matérias que atravessam diferentes partidos. Da mesma forma, não creio que se possa deduzir do programa do BE a defesa de um sistema económico mais ou menos decalcado das experiências falhadas do “socialismo real”. Por outro lado, é possível encontrar uma convergência entre posições que têm vindo a ser defendidas por Carlos Santos (importância do investimento público, prioridade à luta contra o desemprego) e aquelas que têm sido defendidas pelo Bloco.
Se passarmos da análise dos programas para um balanço da última legislatura, verificamos que o PS governou chamando a si o apoio de largas franjas do eleitorado habitualmente comprometidas com o PSD. Em contrapartida, foi possível iniciar um diálogo frutuoso entre pessoas da ala esquerda do PS e do BE. As fronteiras que separam apoiantes do PSD e do PS ou do PS e do BE, que agora nos querem fazer crer serem nítidas e evidentes, nem sempre estiveram tão claramente definidas.
E, aliás, nisso reside a situação algo paradoxal em que o PS se encontra. Para reocupar o espaço que lhe ofereceu a maioria absoluta, precisa de encostar o PSD à direita mais consequentemente neoliberal e o BE a uma extrema-esquerda irresponsável, precisa de radicalizar as divergências que o separa dos partidos com os quais disputa um eleitorado comum. Mas, como essa maioria absoluta se apresenta como uma hipótese muito improvável, acabará por ser obrigado a governar (caso vença as próximas eleições) procurando apoios nos partidos que agora demoniza.
Para reconquistar os votos que perdeu para a sua esquerda nas europeias, o PS tem de secundarizar os conflitos nascidos das políticas seguidas pelo governo na Educação, na Saúde, na Segurança Social, na Justiça, na Cultura... Conflitos que opuseram o governo a muitos dos seus eleitores e mesmo a militantes do próprio partido. E tentará fazê-lo agitando o espantalho do regresso ao poder de uma direita pura e dura, omitindo que uma viragem nesse sentido só poderá suceder com a cumplicidade do próprio PS, uma vez que nada permite prever a formação de uma maioria absoluta do PSD ou PSD-CDS.
Pelo contrário, para os partidos à esquerda do PS, uma política de direita não é apenas uma vaga ameaça, mas uma realidade presente. Tem razão Nuno Teles quando em ”Voto útil à esquerda” (Ladrões de bicicletas), afirma que Manuela Ferreira Leite não se comportaria como uma neoliberal ortodoxa, defendendo a redução do estado às suas funções de soberania (justiça, defesa, segurança pública), mas deverá assumir uma estratégia mais “reformista”, procurando introduzir o funcionamento do mercado nos serviços públicos.
Promoverá, sem dúvida, as “ruinosas parcerias público-privadas como forma de desorçamentação”, favorecerá a privatização das “sobrantes participações públicas em indústrias estratégicas, onde a competição é impossível”, “a legislação laboral será flexibilizada e o governo fechará os olhos a abusos e ilegalidades (ex: recibos verdes) que proliferam no nosso mercado de trabalho”.
E Nuno Teles elenca toda uma série de medidas prováveis de sentido liberalizador que, por certo, serão adoptadas pelo PSD na protecção social, na saúde, na educação, para concluir com a questão: de facto, quem poderá desejar um governo assim? A ironia da questão está no facto de ser já “assim” o governo que temos, o governo do PS.
O “voto útil” no PS para vencer a direita é de pouca utilidade quando a direita já se instalou no poder pela mão do próprio PS. A verdadeira questão está em saber o que fazer para que uma viragem à esquerda possa ter lugar.
Vivemos em tempos marcados por muito poucas certezas. À falência do “socialismo real” seguiu-se a crise da social-democracia, caída nos braços da “terceira via” e, por fim, o descrédito do neoliberalismo. Tudo parece estar em aberto. Poderia pensar-se estarem criadas condições para diferentes partidos e movimentos de esquerda repensarem ideias feitas, experimentarem novos caminhos e perseguirem objectivos comuns. Infelizmente não parece (ainda?) ser assim. Também esta matéria estamos em tempo de vésperas.
A conjuntura eleitoral não é a mais favorável a disposiçóes autocríticas e a políticas abertas para o diálogo. Mais facilmente o falhanço de experiências passadas suscita a tentação contrária: sublinhar as diferenças entre "nós" e os "outros" para reafirmar uma identidade que se vê ameaçada. Agora, aquilo que sobretudo importa são os resultados imediatos contabilizados em votos, ainda que das “vitórias” almejadas não resultem mudanças políticas das quais possam decorrer transformações positivas da situação económica e social com que nos confrontamos.
Vivemos, pois, tempos de crispação e não de diálogo construtivo. Cada partido organizou as suas listas de candidatos, excluindo delas as vozes que pudessem destoar da sua orientação dominante. Desta vez, o PCP não foi a excepção: todos, da esquerda à direita, lhe seguiram o exemplo. Priveligiou-se a repetição acrítica dos discursos-padrão quando, mais do que nunca, seriam necessárias ideias novas.
Tempo de eleições, tempo de certezas irrevogáveis, tempo de sectarismos, tempo de soluções adiadas... Tempo de vésperas. É bem possível que no dia 27 de Setembro todos proclamem vitórias e que, no entanto, em última análise, não haja vencedores. Talvez, então, se possa voltar ao princípio: o que fazer para construir uma alternativa de esquerda?
Não questiono a utilidade desse trabalho ao qual muito poucos se têm dedicado. Nem vou exigir a ninguém análises que excluam a argumentação a favor das suas opções eleitorais. Porém, conhecidas essas opções, não posso deixar de notar que, num contexto pré-eleitoral, é muito fácil passar da leitura dos programas para uma dramatização das diferenças que neles se podem descobrir, o que por vezes implica agitar improváveis ameaças futuras vindas da “oposição” e esquecer desagradáveis realidades presentes que responsabilizam o actual governo. Carlos Santos nem sempre consegue fugir a esta tentação.
De facto, não sendo previsível que das próximas eleições resultem maiorias absolutas, nenhum dos programas em análise vai ser aplicado tal como agora se apresenta. Os partidos sabem-no e isso deixa-os também à vontade para neles prometerem aquilo que (por causa dos “outros”, é claro) sabem que nunca poderão cumprir. Vivemos um tempo de vésperas. A crua realidade acabará por impôr-se, obrigando a que se venham a procurar consensos onde hoje se perfilam contradições insanáveis. E a questão fundamental passará a ser “como e com quem essas convergências se vão fazer”.
Não me parece que a revisão do Código de Trabalho, nos termos em que é reclamada pelo BE e pela CDU, dependa de uma vitória eleitoral do PS e ou do PSD. Ou que a nacionalização da GALP e da EDP, pedida pelo Bloco, possa ser decidida por uma qualquer maioria parlamentar saída das próximas eleições. Nestas, como em muitas outras matérias, as divergências entre o PS e o PSD vão apagar-se e continuarão a perdurar as posições do “bloco central”.
E, sinceramente, não creio que a continuidade das medidas positivas tomadas pelo actual governo no âmbito da promoção das energias renováveis possam ser postas em causa pelos próximos resultados eleitorais. Há áreas de consenso nestas matérias que atravessam diferentes partidos. Da mesma forma, não creio que se possa deduzir do programa do BE a defesa de um sistema económico mais ou menos decalcado das experiências falhadas do “socialismo real”. Por outro lado, é possível encontrar uma convergência entre posições que têm vindo a ser defendidas por Carlos Santos (importância do investimento público, prioridade à luta contra o desemprego) e aquelas que têm sido defendidas pelo Bloco.
Se passarmos da análise dos programas para um balanço da última legislatura, verificamos que o PS governou chamando a si o apoio de largas franjas do eleitorado habitualmente comprometidas com o PSD. Em contrapartida, foi possível iniciar um diálogo frutuoso entre pessoas da ala esquerda do PS e do BE. As fronteiras que separam apoiantes do PSD e do PS ou do PS e do BE, que agora nos querem fazer crer serem nítidas e evidentes, nem sempre estiveram tão claramente definidas.
E, aliás, nisso reside a situação algo paradoxal em que o PS se encontra. Para reocupar o espaço que lhe ofereceu a maioria absoluta, precisa de encostar o PSD à direita mais consequentemente neoliberal e o BE a uma extrema-esquerda irresponsável, precisa de radicalizar as divergências que o separa dos partidos com os quais disputa um eleitorado comum. Mas, como essa maioria absoluta se apresenta como uma hipótese muito improvável, acabará por ser obrigado a governar (caso vença as próximas eleições) procurando apoios nos partidos que agora demoniza.
Para reconquistar os votos que perdeu para a sua esquerda nas europeias, o PS tem de secundarizar os conflitos nascidos das políticas seguidas pelo governo na Educação, na Saúde, na Segurança Social, na Justiça, na Cultura... Conflitos que opuseram o governo a muitos dos seus eleitores e mesmo a militantes do próprio partido. E tentará fazê-lo agitando o espantalho do regresso ao poder de uma direita pura e dura, omitindo que uma viragem nesse sentido só poderá suceder com a cumplicidade do próprio PS, uma vez que nada permite prever a formação de uma maioria absoluta do PSD ou PSD-CDS.
Pelo contrário, para os partidos à esquerda do PS, uma política de direita não é apenas uma vaga ameaça, mas uma realidade presente. Tem razão Nuno Teles quando em ”Voto útil à esquerda” (Ladrões de bicicletas), afirma que Manuela Ferreira Leite não se comportaria como uma neoliberal ortodoxa, defendendo a redução do estado às suas funções de soberania (justiça, defesa, segurança pública), mas deverá assumir uma estratégia mais “reformista”, procurando introduzir o funcionamento do mercado nos serviços públicos.
Promoverá, sem dúvida, as “ruinosas parcerias público-privadas como forma de desorçamentação”, favorecerá a privatização das “sobrantes participações públicas em indústrias estratégicas, onde a competição é impossível”, “a legislação laboral será flexibilizada e o governo fechará os olhos a abusos e ilegalidades (ex: recibos verdes) que proliferam no nosso mercado de trabalho”.
E Nuno Teles elenca toda uma série de medidas prováveis de sentido liberalizador que, por certo, serão adoptadas pelo PSD na protecção social, na saúde, na educação, para concluir com a questão: de facto, quem poderá desejar um governo assim? A ironia da questão está no facto de ser já “assim” o governo que temos, o governo do PS.
O “voto útil” no PS para vencer a direita é de pouca utilidade quando a direita já se instalou no poder pela mão do próprio PS. A verdadeira questão está em saber o que fazer para que uma viragem à esquerda possa ter lugar.
Vivemos em tempos marcados por muito poucas certezas. À falência do “socialismo real” seguiu-se a crise da social-democracia, caída nos braços da “terceira via” e, por fim, o descrédito do neoliberalismo. Tudo parece estar em aberto. Poderia pensar-se estarem criadas condições para diferentes partidos e movimentos de esquerda repensarem ideias feitas, experimentarem novos caminhos e perseguirem objectivos comuns. Infelizmente não parece (ainda?) ser assim. Também esta matéria estamos em tempo de vésperas.
A conjuntura eleitoral não é a mais favorável a disposiçóes autocríticas e a políticas abertas para o diálogo. Mais facilmente o falhanço de experiências passadas suscita a tentação contrária: sublinhar as diferenças entre "nós" e os "outros" para reafirmar uma identidade que se vê ameaçada. Agora, aquilo que sobretudo importa são os resultados imediatos contabilizados em votos, ainda que das “vitórias” almejadas não resultem mudanças políticas das quais possam decorrer transformações positivas da situação económica e social com que nos confrontamos.
Vivemos, pois, tempos de crispação e não de diálogo construtivo. Cada partido organizou as suas listas de candidatos, excluindo delas as vozes que pudessem destoar da sua orientação dominante. Desta vez, o PCP não foi a excepção: todos, da esquerda à direita, lhe seguiram o exemplo. Priveligiou-se a repetição acrítica dos discursos-padrão quando, mais do que nunca, seriam necessárias ideias novas.
Tempo de eleições, tempo de certezas irrevogáveis, tempo de sectarismos, tempo de soluções adiadas... Tempo de vésperas. É bem possível que no dia 27 de Setembro todos proclamem vitórias e que, no entanto, em última análise, não haja vencedores. Talvez, então, se possa voltar ao princípio: o que fazer para construir uma alternativa de esquerda?
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