sábado, 19 de janeiro de 2013



“Socialismo”

Francisco Louçã, João Semedo e José Manuel Pureza redigiram um primeiro esboço de um documento que pretende lançar as bases políticas e ideológicas de uma nova corrente no seio do Bloco de Esquerda, designada por “Socialismo”.

Desse documento e do projecto que motivou a sua redacção, apenas conheço aquilo que foi divulgado pelo jornal i (11-1-13) e pelo Público (18-1-13). Aliás, não há ainda um documento final, mas um texto em construção, aberto a novas contribuições. Apesar disso, as intenções dos seus autores parecem estar desde já balizadas por algumas ideias fundamentais.

Em primeiro lugar, constatam que as divergências ideológicas que dividiam os dois principais partidos que estiveram na origem do BE, a UDP e o PSR, passados 40 anos após a sua fundação, já não têm razão de ser. Ora, se assim é, por que é que persistem as “associações” (de facto, verdadeiras tendências organizadas) que tiveram origem naqueles partidos? Em segundo lugar, a organização de uma nova tendência no seio do Bloco reflecte a necessidade de um novo realinhamento que seja capaz de reflectir as diferentes opções políticas com que o Bloco se confronta na actualidade. Este aggiornamento tornou-se indispensável e o debate ideológico que implica só pode ser benéfico para o partido.

Posto isto, importa saber aquilo que está, de facto, em discussão. Os promotores da nova corrente bloquista começam por se demarcar das experiências socialistas desenvolvidas na URSS e na RP da China, mas não esclarecem quais são os fundamentos ideológicos dessa divergência. Concretamente, e a respeito da experiência soviética: a crítica fica-se pela denúncia do estalinismo ou essa crítica alarga-se ao leninismo? Sendo verdadeira a primeira hipótese, então em que é que essa crítica se distingue da crítica trotskista que já fazia parte do património ideológico do PSR?

Tanto quanto se pode saber neste momento, o texto inicial redigido por Francisco Louçã, João Semedo e José Manuel Pureza, não contou com o contributo de Luís Fazenda ou de outros dirigentes do Bloco ligados à UDP. Podemos supor a existência de divergências? E essas divergências, se existirem, partem de uma avaliação diferente do trotskismo (o que significaria que as velhas fronteiras que separavam a extrema-esquerda nos anos 70 ainda não teriam sido vencidas) ou prendem-se a uma discussão mais alargada acerca do marxismo-leninismo?

Além disso, o PSR tem mantido uma ligação à IV Internacional. Os militantes do Bloco, ainda inscritos no PSR vão manter essa filiação ou acompanham Louçã num percurso político que os afastaria definitivamente dessa organização internacional de inspiração trotskista?

Penso que ninguém ignora que o BE, actualmente, está muito longe de ser um partido leninista. Isso pode ser verificado não só na recusa do “centralismo democrático” e no distanciamento em relação aos complexos “vanguardistas” ainda vivos no PCP, mas também numa valorização diferente e num diferente tipo de relacionamento com os novos movimentos sociais.

Mas uma coisa é um movimento “táctico” de adaptação a uma realidade muito diferente daquela onde o leninismo se impôs como corrente dominante no seio do marxismo revolucionário, outra coisa é uma reflexão teórica consistente acerca da sua história e dos seus fundamentos teóricos. Essa discussão está por fazer no seio do BE. Não sei se será agora que ela vai ocorrer ou se, mais uma vez, se vai ficar por um tratamento cosmético destes problemas.

Os promotores da corrente “Socialismo” pretendem demarcar-se não só dos “socialismo real” implantado na URSS, como também da social-democracia. Tal como, na crítica ao PCP, não se deve misturar divergências de princípio (que é o socialismo?) com divergências conjunturais (deve-se ou não sair do euro?), também aqui não se deve amalgamar a crítica à social-democracia com a crítica ao compromisso do PS com o memorando da troika.

Nesta matéria, há questões fundamentais que eu gostaria de ver esclarecidas: 1) O Bloco defende uma democracia representativa, entendida no quadro da tradição liberal, ou a ditadura do proletariado? 2) Defende uma economia mista, onde coexistem a propriedade privada, a propriedade cooperativa e a propriedade pública, ou a colectivização dos meios de produção? 3) Defende uma economia de mercado, atribuindo ao Estado uma função reguladora, ou uma economia de planificação central? 4) Defende uma redistribuição da riqueza através de impostos progressivos e da defesa das funções sociais do Estado, ou os princípios marxistas de “a cada um segundo o seu trabalho” (socialismo) e “a cada um segundo as suas necessidades” (comunismo)?

Penso que deve ser também reavaliado o papel do proletariado no processo de transformações sócias que poderá conduzir ao socialismo. Se se identifica o proletariado com a classe operária, então teremos de constatar que ela é, nas sociedades capitalista desenvolvidas, uma classe minoritária. Se se alarga o conceito de proletariado de forma a abranger todos os trabalhadores assalariados, então estaremos a referirmo-nos a uma grande diversidade de grupos sociais, com características sócio-económicas próprias e, inclusive, a sectores que, quer pelo nível dos seus rendimentos económicos como pelos seus hábitos e estilo de vida, se consideram a si mesmo como pertencentes à “classe média”. Ou seja, a sectores que muito dificilmente se revêem na caracterização marxista do proletariado: “aqueles que nada têm a perder, a não ser as suas cadeias”.

De facto, o “proletariado”, entendido nestes termos, ou seja, abrangendo os diversos grupos sociais que se distribuem pelos diferentes extractos da classe média, parece-me muito pouco disposto a comprometer-se com projectos revolucionários que, inevitavelmente, associam àqueles que estiveram na origem dos regimes totalitários que ao longo do século XX se foram instaurando em nome do socialismo. Por outro lado, é indubitavelmente mobilizável para uma política reformista que contribua para criar as condições necessárias à realização dos projectos de vida que cada tenha para si próprio e a garantia de uma qualidade de vida minimamente satisfatória para todos.

Na minha opinião, é nestas questões, e não sobre aquilo que fez o Sócrates ou sobre o que diz o Seguro, que se deve centrar o debate acerca da social-democracia.

Há, ainda, um debate por fazer no seio do Bloco acerca das questões ambientais. Geralmente, fica-se pela constatação de que, nas sociedades capitalistas, a procura do lucro máximo se faz à custa do respeito pelo equilíbrio ecológico. Esquece-se facilmente que a visão marxista da história, apostando num desenvolvimento sem freio das forças produtivas, produz (e, na prática, isso tem-se verificado sistematicamente na história dos países socialistas) os mesmos resultados. Enfim, o próprio conceito de “equilíbrio ecológico” parece-me dificilmente conciliável com uma visão do mundo que assenta na oposição dialéctica dos contrários como motor do movimento e da mudança. Finalmente, a própria ideia do comunismo, que associa a possibilidade de uma sociedade sem classes a um estado de abundância que se traduziria no princípio distributivo de “a cada um segundo as suas necessidades”, parece não ter em conta o facto dos recursos naturais, ao contrário das necessidades humanas, serem limitados e relativamente escassos.

 Em conclusão. O aparecimento da nova tendência proposta por Francisco Louçã, João Semedo e José Manuel Pureza parece-me uma coisa boa. Em primeiro lugar, porque pode ser um ponto de partida para um debate teórico que transcenda os limites das questões conjunturais e das opções tácticas. Em segundo lugar, porque, na minha opinião, o reforço da democracia no seio do Bloco não passa pelo fim das tendências, mas pela sua multiplicação. E em terceiro lugar, porque as velhas divisões herdadas dos anos 70 são, realmente, anacrónicas

Será bom que esta nova tendência se organize e que se confronte com outras com propostas políticas e ideológicas alternativas. A unidade faz-se em torno da defesa da igualdade – o grande objectivo comum que define a esquerda e a distingue da direita. Entretanto, à esquerda colocam-se dois desafios fundamentais: o primeiro consiste em se capaz de articular a defesa da igualdade com o da liberdade individual; e o segundo consiste em impedir que a democracia seja capturada pelo poder económico, reduzindo-se a um mero formalismo legal. Nomeadamente, a este respeito, verifica-se que os poderes efectivos dos governos nacionais se encontram cada vez mais diminuídos perante o poder efectivo das multinacionais e da finança internacional.

Posto isto, ninguém está autorizado a declarar-se como proprietário exclusivo das soluções que será necessário adoptar. Um confronto livre e desinibido de ideias diferentes é hoje, mais do que nunca, imprescindível. Esperemos que o Bloco, à semelhança do PCP, não pense que poderá sobreviver a estes tempos de mudanças profundas e de novos desafios enclausurando-se numa fortaleza de dogmas inquestionáveis.

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