domingo, 14 de outubro de 2012



Partidos políticos, sistemas eleitorais e regime democrático

Com a queda do Muro de Berlim, foi encerrado o capítulo das chamadas “democracias populares”. Nos nossos dias, a ideia de democracia está necessariamente associada à realização de eleições livres e competitivas e, portanto, ao pluripartidarismo.

Contudo, se há quem defenda que o regime democrático tem um valor intrínseco (a legitimidade do exercício do poder funda-se na sua representatividade), outros reconhecem-lhe um valor essencialmente instrumental. A democracia justificar-se-ia em nome da defesa do bem-estar das populações ou em nome da garantia de uma alternância pacífica de diferentes partidos no governo.

No primeiro caso, deixa-se aberta uma porta à possibilidade da “suspensão da democracia” como forma de, em determinadas circunstâncias, viabilizar a tomada de decisões políticas que beneficiariam toda a sociedade, embora, por ignorância, a maioria dos cidadãos não estivesse disposta a sufragá-las. O poder arroga-se, então, uma legitimidade fundada na clarividência de uma elite (política, militar, tecnocrática…) que se considera imbuída de uma missão salvífica. Estas ideias têm hoje, em Portugal, um número cada vez maior de adeptos. Convirá recordar que todas as ditaduras começaram assim.

No segundo caso, pelo contrário, considera-se que nenhuma elite está imunizada contra o erro e que, portanto, aquilo que importa é garantir a possibilidade da sua correcção. Ou seja, a substituição pacífica dos governos cujos programas se revelaram inviáveis ou injustos. Os defensores desta tese usualmente defendem sistemas eleitorais maioritários, mais favoráveis à constituição de governos apoiados no parlamento por maiorias absolutas. Ou seja, governos estáveis, facilmente responsabilizáveis pelos resultados práticos da sua governação e, em função disso, reconduzidos ou demitidos nas suas funções. Nesta perspectiva, a questão da representatividade do parlamento eleito passa para segundo plano.

Os sistemas eleitorais maioritários tendem a gerar o bipartidarismo, como acontece na Inglaterra. Em Portugal, também isto encontra defensores. Pode ser interpretado neste sentido a defesa recorrente dos círculos uninominais ou a defesa de uma redução significativa do número de deputados. Qualquer uma destas reformas visa em última instância, embora isso não seja assumido pelos seus defensores, reduzir o espectro partidário português ao PS e ao PSD, que se alternariam no poder sem necessidade de estabelecer consensos e alianças com outros partidos políticos.

Curiosamente, em Portugal, esta última posição tem aparecido muitas vezes amalgamada com a crítica populista dos partidos, apoiando-se na ideia de que os deputados eleitos em círculos uninominais dependeriam mais da confiança dos eleitores do que da confiança das direcções partidárias (hipótese que a experiência britânica não comprova) ou, pior, a de que a democracia representativa é um luxo caro no qual se poderia poupar reduzindo o parlamento a pouco mais de cem deputados.

De facto, nas sociedades contemporâneas, não existem regimes democráticos não partidários. Pelo contrário, os partidos nasceram naturalmente com a afirmação dos regimes democráticos e a crítica dos partidos esteve sempre associada a tentativas (por vezes consumadas) de instauração de regimes autoritários.

A pluralidade das opções políticas própria de uma sociedade aberta não pode manifestar-se plenamente no quadro de um regime fundado sobre uma autoproclamada competência de “técnicos”, nem num sistema bipartidário onde a disputa do centro político conduz à marginalidade política uma percentagem significativa do eleitorado e se traduz na alternância no poder de partidos cada vez mais iguais entre si.

Dir-me-ão que a tendência actual para o aumento das abstenções prova que mesmo um sistema multipartidário como o português, deixa sem representação política uma percentagem significativa de eleitores. Na verdade, boa parte da abstenção revela apenas comodismo e ignorância, mas haverá também sempre quem queira intervir politicamente fora dos partidos. Na minha opinião, os partidos são indispensáveis, mas não devem monopolizar as possibilidades de exercício do poder. O regime político português já permite a apresentação de candidaturas independentes à Presidência da República, às Câmaras e Assembleias Municipais, e às Juntas de Freguesia. Penso que essa possibilidade deveria ser alargada à Assembleia da República.

Uma democracia representativa só pode fortalecer-se, abrindo-se a uma maior intervenção política de cidadãos sem a mediação obrigatória dos partidos. Mas isso não significa que estes possam ser descartáveis. Os deputados com assento na Assembleia da República devem ser eleitos a partir da apresentação de projectos políticos nacionais e não na base da defesa de interesses regionais, locais ou sócio-profissionais mais restritos. E os partidos políticos, como entidades colectivas organizadas à escala nacional em torno de um programa político de governação, são as organizações naturalmente vocacionadas para assumpção destes propósitos.

Não há sistemas eleitorais perfeitos e, portanto, ninguém pode descartar a possibilidade de reformar aquele que vigora em Portugal desde 1976. No entanto, só me parecem defensáveis mudanças que contribuam para um reforço e não para um enfraquecimento da democracia representativa.

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