sexta-feira, 22 de março de 2013



Representatividade e legitimidade democrática

A apresentação da moção de censura do PS coloca-nos de novo perante o problema da legitimidade democrática do governo PSD/CDS.

Vivemos no quadro de uma democracia representativa, que no essencial defendo, embora considere que a sua forma actual é susceptível de um desenvolvimento que vá no sentido de um reforço das possibilidades de intervenção directa dos cidadãos no exercício do poder político.

Para além disso, o ideal democrático, isto é, a ideia de um governo do povo, implica um debate acerca das formas mais adequadas de representação política que se encontra muito longe de estar resolvido. Concretamente, o conceito de “representação” admite duas interpretações distintas:

Podemos considerar que os representantes do povo são aqueles que os cidadãos eleitores escolheram para, nas instâncias políticas próprias, agirem como agiria o próprio povo se pudesse intervir directamente nessas mesmas instâncias.

Ou, pelo contrário, podemos defender que a ideia de representação implica uma transferência de poderes: uma vez eleitos, os representantes políticos estão autorizados a agirem como bem entenderem, encontrando-se dispensados de seguirem a opinião dos seus eleitores.

Neste caso, dir-se-ia que o princípio da soberania popular se esgota no momento eleitoral. A partir daí, a soberania já não residiria no povo, mas nos órgãos de soberania que este elegeu.

Parece ser este o entendimento de “democracia representativa” defendido por Passos Coelho & Cia. A legitimidade democrática do governo reside no facto de contar com o apoio da maioria dos deputados da Assembleia da República. Não importa que esses deputados tenham sido eleitos com base num programa eleitoral que, de imediato, passaram a ignorar e mesmo a contrariar. Não importa que o governo não disponha da confiança dos parceiros sociais. Não importa que as suas políticas sejam contestadas, inclusive, por membros destacados dos próprios partidos que o apoiam. E, sobretudo, não importa que diferentes manifestações públicas tenham tornado evidente o isolamento em que se encontra o governo.

 Não é esse o meu entendimento de democracia representativa.

O PS vai apresentar uma moção de censura que, tal como aquelas que já foram apresentadas pelo PCP e pelo Bloco, será chumbada por uma maioria de deputados que consideram não ter de prestar contas àqueles que os elegeram, mas às direcções dos partidos de que dependem.

De facto, tudo indica que esses deputados já não representam de facto aqueles que dizem representar. O PSD e o CDS, dispondo de uma maioria absoluta no parlamento, contam com um apoio social francamente minoritário. Por isso, a única solução democrática só pode ser a sua demissão e a convocação de eleições antecipadas. O poder de decidir tem de ser devolvido aos eleitores.

quinta-feira, 21 de março de 2013



O que é que eu sei sobre a crise no Chipre?

1.  1. O sector financeiro encontrava-se extraordinariamente sobredimensionado em relação ao conjunto da economia cipriota (representa mais de sete vezes o valor do PIB).

2.    2. Tal facto deve-se ao facto do Chipre se ter convertido num paraíso fiscal (sigilo bancário, cargas fiscais reduzidíssimas, etc.). A oligarquia russa e ucraniana detém aí depósitos no valor de milhares de milhões de euros.

     3. Os bancos do Chipre procuraram multiplicar os seus lucros adquirindo grandes quantidades de títulos da dívida pública grega.

4.   4.  O perdão de 50% da dívida grega aos investidores privados, acordado com a Troika, deixou os bancos cipriotas numa situação de insolvência.

5.    5. A sua previsível falência arrastaria consigo o Estado, que se encontra, portanto, próximo de uma situação de bancarrota.

6.   6. A Troika impôs ao governo do Chipre, como condição de um resgate financeiro, a aplicação de um imposto extraordinário sobre os depósitos bancários, equivalente a mais de metade do dinheiro emprestado (5,8 mil milhões de euros em 10 mil milhões).

7.  7.  Para não afugentar os grandes depositantes (isto é, para assegurar a continuidade do seu estatuto de paraíso fiscal) o governo cipriota, resolveu que esse imposto não deveria taxar exclusivamente (e maximamente) os depósitos mais vultuosos, mas deveria ser distribuído por toda a gente (inclusive pelos pequenos aforradores), segundo um critério de 6,75% para os depósitos abaixo dos 100 mil euros e 9,9% para aqueles que estivessem acima desse valor.

8.   8. A revolta da população, as evidentes manifestações de desagrado de Moscovo e a reacção negativa que imediatamente se fez sentir nos mercados financeiros internacionais perante esta medida de autêntica expropriação de capitais privados, fez com que o Parlamento grego (onde, aliás, o partido do governo não dispõe de uma maioria absoluta) a rejeitasse.

9. 9. Perante, esta situação o governo cipriota voltou-se para a Rússia, que poderá estar na disposição de conceder um empréstimo ao Chipre em troca da concessão da exploração das reservas de gás natural descobertas nas suas águas territoriais.

1   10. Estes factos, diz-se, deixaram a chanceler Angela Merkl muito próximo de um ataque de fúria. Chipre arrisca-se a ser corrido da zona euro (e, portanto, a ter de emitir uma moeda própria, desvalorizadíssima).
 
1   11. Nos últimos cinco anos, a ilha de Chipre foi governada por um governo formado pelo Partido Comunista, derrotado nas últimas eleições por um partido da direita. Pergunta-se: qual é o poder efectivo das instituições políticas eleitas, nomeadamente num pequeno país, perante o poder real da alta finança e das grandes potências internacionais? Que peso tem a opinião dos cidadãos cipriotas na escolha do futuro do seu país? Onde pára a democracia?

domingo, 17 de março de 2013



“O povo é quem mais ordena”

Ao longo da história, o conceito de democracia tem assumido diferentes significados. Contudo, será sempre indissociável do de poder popular. Democracia é o governo do povo. Na antiguidade, em Atenas, esse poder realizava-se sob a forma de uma democracia directa, nas sociedades modernas, onde a Cidade-Estado deu lugar aos Estados Nação, adoptou-se a a forma da democracia representativa. Nos séculos XVIII e XIX, a democracia representativa apareceu associada à vontade de retirar à “populaça” poder decisório, remetendo-o exclusivamente para uma elite social cujo traço distintivo consistia no facto de ser detentora de propriedade ou de um certo nível de riqueza. Foi a época do voto censitário. Pensou-se que esta perversão do ideal democrático, habitual nos primórdios do liberalismo, seria vencida com a generalização do sufrágio universal. De facto, não foi assim.

Num post aqui publicado há alguns dias atrás denunciei o sequestro da democracia pelos aparelhos partidários e defendi a revisão da Constituição no sentido de ser autorizada a apresentação de candidaturas independentes à Assembleia da República.

Depois disso, foi publicado uma Manifesto para a Democratização do Regime onde se defende, não só a possibilidade de candidaturas independentes à AR, mas também listas partidárias onde a ordem dos candidatos possa ser alterada pelos eleitores e eleições primárias, abertas a todos os simpatizantes dos diferentes partidos, para escolha dos seus candidatos a certos cargos políticos como, por exemplo, o de Presidente da Câmara.

Acrescento, agora, uma outra sugestão: a da limitação dos mandatos de todos os cargos políticos, inclusive o de deputado da AR. Nenhuma destas medidas é motivada por qualquer hostilidade ao sistema de partidos. Sabemos bem que, no nosso tempo, não são conhecidos exemplos de regimes democráticos sem eleições competitivas disputadas por diferentes formações partidárias. Trata-se, antes, de recusar uma democracia reduzida a uma partidocracia e de dar um contributo contra a formação de uma “classe política”, geradora de interesses próprios, agindo cada vez mais segundo uma lógica da sua perpetuação nas estruturas do poder.

Qualquer partido se pode impor a limitação dos mandatos dos deputados sem aprovação de qualquer legislação específica. Estou convencido que a execução desta reforma acabaria por fortalecer aqueles que a implantasse, libertando-os da lógica auto-reprodutiva dos “aparelhos”.

Actualmente, vivemos uma situação paradoxal: temos um governo que não merece a confiança dos eleitores e uma oposição que não é capaz de construir uma alternativa, porque parece mais interessada na defesa dos seus diferentes interesses partidários do que no interesse nacional. Este bloqueio do sistema político é particularmente perigoso e pode por em risco a própria sobrevivência do regime democrático.

Para além da crise económica, vivemos uma crise política. Exigem-se reformas que vão no sentido de dar mais poder ao povo e que permita vencer o fosso cada vez mais profundo que se está a abrir entre governantes e governados, entre as elites partidárias e os cidadãos comuns. A dicotomia “nós” e “eles” vem do tempo de Salazar e tem fortes raízes na sociedade portuguesa. Nos nossos dias, continua a existir quem pense assim. Talvez a profunda crise social que vivemos tenha a virtude de abrir portas que permitam a todos compreender que a política é uma questão comum. Só assim, fará sentido que se continue a cantar a “Grândola”.

quarta-feira, 13 de março de 2013



Eleições autárquicas e unidade das esquerdas

O PS enviou uma carta ao PCP e ao BE com o propósito de saber a sua disponibilidade para a apresentação de lista conjuntas nas próximas eleições autárquicas. Não sei se se trata de uma proposta convicta de unidade ou de um simples acto de propaganda. Entretanto, parece-me interessante olhar para as reacções dos partidos interpelados.

O PCP não está interessado. Segundo Jerónimo de Sousa, o que importa é a unidade na luta. Ou seja, o PCP só estaria disponível para listas conjuntas com o PS em Fornos de Algodres, se o PS passasse a mobilizar os seus militantes para as manifestações que a CGTP organiza em Lisboa. Ou então, o PCP admitiria a hipótese de uma candidatura conjunta em Freixo de Espada à Cinta, caso o PS tivesse votado a favor da moção de censura que o PCP apresentou na AR no passado mês de Outubro. Assim, não.

Quanto ao Bloco, reuniu com o PS em Dezembro passado para lhe comunicar formalmente as decisões da última Convenção. Ora, admitiu-se aí a hipótese de apresentação de listas conjuntas da esquerda às autarquias desde que o PCP quisesse integrar essas coligações. Ou seja, o Bloco está disponível para se aliar ao PS, mas só se o PCP deixar. E, pelos vistos, não deixa. Veio agora João Semedo dizer que o convite do PS chegou tarde. Como assim? Do ponto de vista do Bloco, desconhecem-se os programas e os cabeças de lista propostos. E, do ponto de vista do PCP (a quem, como vimos se atribuiu um poder de veto), a recusa não se prende essencialmente com o calendário.

Os partidos de esquerda têm sido sujeitos a uma evidente pressão popular no sentido de conjugarem esforços contra a unidade da direita. Conjugarem forças para infligir uma grande derrota ao PSD e ao CDS nas próximas eleições autárquicas seria dar um passo muito importante no sentido do derrube do governo. Por outro lado, se não forem capazes de se entender nas próximas eleições autárquicas, como o poderão fazer para criar uma alternativa à maioria PSD-CDS em próximas legislativas? O sectarismo à esquerda será sempre uma vitória da direita.

Regressamos à questão inicial. A proposta de unidade do PS é feita de boa fé ou é um simples actos de propaganda? Só há uma maneira de saber. Em cada concelhia, os representantes locais do PS e do BE (o PCP, inevitavelmente, coligar-se-á consigo mesmo na CDU), devem sentar-se à mesa para discutir programas e listas de candidatos. Haverá concelhos onde a unidade será impossível. Mas, se isso se verificar em cada um dos 308 existentes em Portugal, os eleitores vão querer saber porquê e vão tirar daí as necessárias ilações.


O Bloco e o marxismo

No Bloco, o debate ideológico nunca é assumido enquanto tal, mas apresenta-se sempre, envergonhadamente, sob a capa das discussões em torno da democracia interna e das opções tácticas.

Finalmente, João Semedo, numa entrevista ao Expresso (9-3-13), a propósito da constituição da nova tendência promovida por si, por Francisco Louçã e por José Manuel Pureza, afirmou a dado passo:”Assumimo-nos como marxistas, mas olhamos para as correntes contemporâneas do socialismo crítico”.

A segunda oração desta frase é de tal forma vaga (O que significa “olhamos”? A que correntes do “socialismo crítico” se refere?) que não permite um comentário. Já a primeira é significativa e coloca-me perante alguns problemas. Antes de mais não conheço nenhum documento programático do Bloco nem encontro nos seus estatutos nada que o defina como “marxista”. Qual é, pois, o sujeito da referida afirmação? Semedo, Louçã e Pureza consideram-se marxistas? Os membros da nova corrente consideram-se marxistas? A adesão ao marxismo é uma condição de acesso a essa nova corrente?

Sendo a resposta a esta última questão positiva, então não preciso de outras razões para não aderir à nova tendência, uma vez que não sou marxista. Por outro lado, não há dúvidas de que não é essa a razão que explica que haja militantes da UDP e do PSR que recusem a dissolução das tendências a que pertencem, pois também os seus aderentes se assumem como marxistas. O documento aprovado na última conferência nacional da UDP intitula-se mesmo “Marxistas, também amanhã” e os militantes do PSR sempre se assumiram como trotskistas (alinhados com as posições do chamado “secretariado unificado” da IV Internacional). E também não é ela que explica a crítica dos militantes do Bloco apoiantes da lista B na última Convenção, entre os quais muitos se afirmam igualmente “marxistas”.

Portanto, sinto-me à margem de uma polémica que, embora isso não seja assumido explicitamente, opõe entre si pessoas com diferentes concepções do marxismo, mas onde não parece haver lugar para se questionar o próprio marxismo. Quando aderi, o Bloco era, de facto, um movimento plural que dificilmente se poderia definir em termos ideológicos. Conviviam no seu seio marxistas e outras pessoas que não se definiam como tal. De facto, julgo que, ainda hoje, muitos dos aderentes do Bloco não se define ideologicamente assim. E tenho a certeza que a esmagadora maioria do seu eleitorado não entende o socialismo, no sentido marxista do termo. Contudo, hoje, o BE parece um partido formado por diferentes tendências marxistas.

Um dos principais problemas de implantação do Bloco está, aliás, precisamente aqui, no enorme desfasamento ideológico que se pode verificar entre a sua elite militante e os seus simpatizantes e eleitorado. A maioria do potencial eleitorado do Bloco tende a apoiar as suas propostas caso a caso e faz depender esse apoio conjuntura política do momento. Mas não é capaz de avançar no sentido de estabelecer com ele uma relação de identificação profunda. Não o considera como o seu partido, mas antes como um partido eventualmente útil quando se trata de expressar um voto de protesto.

À medida que o pluralismo ideológico que caracterizava o Bloco nas suas origens se for perdendo, esse fosso que separa os seus militantes do seu eleitorado tornar-se-á cada vez mais profundo. E daí nada de bom poderá surgir.