quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

A propósito do OGE
Continuidade e coerência


Há uma cassette que, todos os dias, pode ser ouvida na televisão debitada pelos economistas residentes. Diz assim: “os partidos à esquerda do PS não querem saber da dimensão da dívida pública, porque são adeptos do quanto pior, melhor”. Há quem acredite que uma mentira repetida mil vezes acaba por se transformar numa verdade. Mas, apesar deste bombardeamento constante, há ainda quem saiba que as decisões económicas são decisões políticas e não medidas inquestionáveis determinadas por razões meramente técnicas.

O Orçamente Geral do Estado foi apresentado à Assembleia da República e, sem prejuízo de uma análise mais fina, percebem-se já que escolhas políticas foram determinantes na sua elaboração.

Quem vai pagar a redução da dívida pública? Os do costume: os funcionários públicos (salários congelados), os reformados (as pensões mais baixas continuam abaixo do limiar da pobreza), os desempregados (boa parte deles sem direito ao subsídio de desemprego). Quem fica livre daquela maçada? O capital financeiro e rentista. Ou seja, ainda os do costume: os especuladores (as mais-valias conseguidas na bolsa continuam isentas de imposto), a banca (continua a pagar uma taxa de IRC muito inferior àquela que paga qualquer PME), as grandes empresas beneficiárias das parcerias público-privadas (cujos lucros estão garantidos, assumindo o Estado os prejuízos).

Feitas estas escolhas, poderá alguém admirar-se por o governo ter ignorado o BE e o PCP nas negociações prévias à apresentação do OGE? Ou que este venha a ser aprovado com a benevolente abstenção do PSD e do CDS-PP?

Só mais uma questão: quem disse que das últimas eleições resultou uma maioria de esquerda na Assembleia da República?

terça-feira, 26 de janeiro de 2010

Ciclo de Cinema na Velha-a Branca (4)


Vai chegar ao fim o ciclo de cinema que programei para as noites de 4ª feira com o neo-realismo e um filme de Visconti.


Texto de apresentação:


Luchino Visconti, A Terra Treme, 1948


O neo-realismo manifesta-se, tal como o expressionismo, o futurismo e o surrealismo, na literatura e nas artes plásticas. No cinema, aparece-nos como um movimento italiano nascido ainda durante a 2ª Guerra Mundial, mas que se afirmará sobretudo no pós-guerra, e que teve como principais protagonistas Luchino Visconti, (Obsessão, 1942), Roberto Rosselini (Roma, Cidade Aberta, 1945) e Vittorio de Sica (Ladrões de Bicicletas, 1948). Surge-nos influenciado pelo cinema realista francês (Jean Renoir) e pela tradição literária verista italiana (Giovanni Verga), bem como pelo marxismo e, nomeadamente, pelas concepções de Gramsci, para quem apenas “a verdade é revolucionária”. Surge-nos, ainda, como uma reacção contra o chamado cinema dos “telefones brancos”, dominante na época de Mussolini, cinema académico, de entretenimento, geralmente comédias que encenavam em estúdio ambientes abastados onde os tais telefones surgiam como um ícone incontornável.

Em contrapartida, os neo-realistas defendiam que o cinema deveria assumir uma função de testemunho social, centrando-se no quotidiano das pessoas comuns.

Em A Terra Treme, Visconti conta-nos a história da família Valastro, uma família de pescadores que possuem o seu próprio barco, mas que são obrigados a vender o pescado na lota ao preço baixíssimo imposto pelos grossistas. Antonio, o filho mais velho e o patrão da embarcação, revolta-se contra esta exploração que os condena a uma luta diária pela subsistência e é preso.

Libertado, lembra-se de hipotecar a casa da família para obter o capital de que necessita para poder libertar-se do jugo dos intermediários e comercializar em melhores condições o peixe que apanharem. A princípio tudo parece correr bem. Contudo, uma tempestade destrói o seu barco, a família arruína-se, desagrega-se, e Antonio, abandonado por todos, é obrigado a pedir trabalho como simples remador num barco propriedade dos grossistas cujos interesses ousou defrontar.

Numa primeira observação, Visconti permanece fiel ao mais puro credo neo-realista. Os actores não são profissionais, mas gente do povo que fala no seu próprio dialecto, pescadores que se deixam filmar nas funções que desempenham na vida real. As filmagens não decorreram em estúdio mas na própria povoação e os diálogos foram escritos em colaboração com os actores. Os comentários em off sublinham uma intenção de denúncia política.

No entanto, alguns críticos consideram que, ainda assim, a realização de Visconti não é estranha ao caligrafismo que se irá acentuar nos seus filmes posteriores. O caligrafismo é uma tendência do cinema italiano, nascida nos anos 40, que se pode opor tanto ao cinema dos “telefones brancos” como ao neo-realismo e que se exprime no interesse pelos temas literários ou históricos e por um requintado formalismo. Veja-se, como exemplo, Sentimento, que Visconti realizou em 1954, adaptando um conto de Camilo Boito.

De facto, a derrota de Antonio e o destino da família Valastro transportam-nos para o universo das tragédias gregas, onde aqueles que ousam desafiar os deuses atraem sobre si todas as desgraças do mundo. Assim, A Terra Treme surge-nos, paradoxalmente, como um dos mais militantemente comprometidos dos filmes neo-realistas e, ao mesmo tempo, como um primeiro exemplo do terrível pessimismo que é próprio do caligrafismo italiano e que podemos observar em muitas outras obras de Visconti.

quarta-feira, 20 de janeiro de 2010

3) Communisme – notas à margem de algumas entradas do Dictionaire Albert Camus, de Jeanyves Guérin

Camus opõe-se comunismo. Em primeiro lugar, é um crítico do totalitarismo soviético; em segundo, considera-o como uma consequência da aplicação prática das teorias marxistas; e em terceiro, demarca-se claramente duma certa intelectualidade de esquerda que, em nome do marxismo, adopta uma atitude compreensiva e desculpabilizante em face dos crimes do regime estalinista.

Na sua opinião, estas práticas políticas encontram-se relacionadas com uma visão determinista da história que autoriza o terror e a mentira em nome da bondade dos fins supremos, instaurando uma espécie de maquiavelismo em tudo contrário à sua postura ética.

Camus não reduz Marx à utilização que dele fizeram os comunistas. Na sua opinião, existem diferentes Marx e devem ser considerados diferentes períodos na sua obra. Mas condena-o sem reservas quando pretende reduzir o homem a determinismos sociais e baseia a análise da história em leis científicas que regeriam as relações entre as classes. Na sua opinião, não só essas leis não existem, como uma eventual vitória duma revolução proletária pode conduzir ao aparecimento de novos antagonismos sociais, como o demonstrou a experiência soviética.

Condena em Lenine a sua concepção de partido, organização assente num corpo de revolucionários profissionais que se substitui ao povo e à própria classe operária. Daqui resulta uma visão militar da revolução que considera que todas as opções tácticas se justificam na medida em que permitam alcançar o objectivo estratégico. Foi assim que, em vez do desaparecimento gradual do Estado, previsto por Marx após a Revolução, se assistiu, na União Soviética, à construção de um pesado Estado totalitário controlado pela nomenklatura partidária.

Camus muito raramente usa o termo “estalinismo”. Para ele, não se trata tanto de denunciar a obra de um homem, mas as consequências de uma ideologia e de um regime. Contudo, aquilo que exemplifica as suas críticas é aquilo que conhece da época estalinista: a censura, a delação, a tortura, os processos jurídicos viciados, as deportações para campos de trabalhos forçados por crimes de opinião, o assassinato político.

Segundo Silvain Boulogne, autor da entrada citada, “Camus foi um dos raros intelectuais que encetou uma crítica do comunismo no tempo do estalinismo triunfante. Contudo, ao contrário de Hanna Arendt e de Raymond Aron, a sua análise permanece inscrita na linha do pensamento socialista (…). De facto opõe a revolta libertadora à revolução, sinónimo de opressão. Esta revolta deve reencontrar as suas origens fundadoras que o comunismo esqueceu: o sindicalismo e a Comuna”.

Nota à margem: como se sabe, a crítica do estalinismo foi desenvolvida a partir de bases muito diferentes por Trotsky. Não vou agora discutir se com razão ou sem ela. Mas o que dizer daqueles que pretendem apagar todo um passado de compromisso com o estalinismo falando apenas de alguns “erros” que reconhecem ter sido cometidos? Ou seja, sem procederem a qualquer análise minimamente fundamentada das causas que explicam a insistência nesses “erros” durante décadas. Antes minimizando as consequências dos tais “erros” (Quantos milhões de mortos? Não teriam sido tantos assim …) e preparando-se para, em circunstâncias idênticas, fazer tudo mais ou menos na mesma, na expectativa de que, desta vez, os resultados sejam muito diferentes.

segunda-feira, 18 de janeiro de 2010

No 15º aniversário da morte de Miguel Torga

Deixo aqui um pequeno poema:

Meu irmão na distância, homem
Que nesta mesma cama hás-de sofrer,
Que nem a terra nem o céu te domem,
Nada te impeça de viver.

Cito de cor (e peço desculpa se não o fiz bem). O poema pode ser lido num dos volumes (qual?) do Diário.

domingo, 17 de janeiro de 2010




Ciclo de Cinema na Velha-a-Branca (3)

Na próxima 4ª feira, às 21,30, exibem-se os filmes de Buñuel Um Cão Andaluz e A Idade do Ouro.

Eis o texto de apresentação:

O surrealismo é um movimento nascido após a 1ª Guerra Mundial que pretende explorar as manifestações da actividade do inconsciente no processo de criação artística. As suas origens encontram-se na literatura (André Breton, Paul Éluard, Louis Aragon), mas depressa se manifestou de uma forma evidente nas artes plásticas (Max Ernst, Dalí, Hans Arp) e no cinema (Man Ray, Jean Cocteau, Luis Buñuel). Os filmes escolhidos foram realizados por Buñuel. Trata-se de uma sessão dupla na medida em que se trata de duas curtas-metragens, a primeira de 18’ e a segunda de 67’.

Luis Buñuel, Um Cão Andaluz, 1929


Foi o seu primeiro filme e é um dos primeiros filmes surrealistas. Nasceu duma estreita colaboração com Dali. Buñuel diz-nos nas suas memórias (Mon Dernier Soupir) que lhe contou que havia sonhado com uma nuvem que cortava a lua e uma lâmina que seccionava um olho. Dali falou-lhe de sonhos onde viu uma mão donde nasciam formigas e de padres arrastados pelo chão. Decidiram então realizar um filme “a partir do encontro dos sonhos de ambos”.

“O argumento”, diz Buñuel, “ficou escrito em menos de uma semana, obedecendo a uma regra simplicíssima, adoptada de comum acordo: não aceitar nenhuma ideia, nenhuma imagem que pudesse dar lugar a uma explicação racional, psicológica ou cultural. Abrir todas as portas ao irracional. Só acolher as imagens que nos impressionavam, sem procurar saber porquê. Nunca houve qualquer desacordo entre nós. Foi uma semana de identificação completa. Por exemplo, um dizia: ‘O homem toca contrabaixo’. ‘Não’, dizia o outro. E o que tinha tido a ideia aceitava imediatamente a recusa. Sabia que o outro tinha razão. Pelo contrário, quando a imagem proposta por um era aceite pelo outro, parecia-nos imediatamente luminosa, indiscutível e entrava imediatamente no argumento”.

Trata-se de um processo criativo muito próximo do da escrita automática, já experimentado na poesia surrealista e, também, na fotografia (Brassaï) e no desenho (André Masson).

Mas, se o argumento pertence aos dois, a realização é sem dúvida de Buñuel. Dali só apareceu no último dias das filmagens, como actor, interpretando um dos padres arrastados pelo chão. Aliás, como nota João Benard da Costa nas suas Folhas da Cinamateca sobre Buñuel, toda a imagética do filme é bastante mais próxima da obra futura de Buñuel do que da de Dali.

O filme foi recebido entusiasticamente pelos surrealistas. “Belo”, disse Breton, “como o encontro dum guarda-chuva e dum cão numa mesa de autópsia”.

Diz-nos João Bénard da Costa que Um Cão Andaluz poderá parecer-nos hoje algo datado. Contudo, “há neste primeiro filme uma extrema concentração erótica que será apanágio dos grandes Buñuel, um ‘obscuro desejo’ em latência e profundamente perturbador, cuja raiz, como a de qualquer mistério, não é muito facilmente explicável, ou não o é de todo”.


Luis Buñuel, A Idade do Ouro, 1930


A participação de Salvador Dali foi neste filme perfeitamente secundária, de tal forma que Bénard da Costa considera mesmo que a habitual inclusão do seu nome no genérico como argumentista é algo abusiva.

Além disso, o argumento obedece a uma continuidade lógica ou, pelo menos, mais discernível, que o d’ Um Cão Andaluz. Penso que podemos dividi-lo assim: a 1ª parte (a Introdução) é dada pela cena 2 (luta dos escorpiões); as cenas 3 e 4 estabelecem a ligação com a 2ª parte ( cenas 5-17), que tratam da história de um amor proibido e a 3ª (Conclusão), a cena 18, da orgia no Castelo de Selligny onde Buñuel nos propõe a sacralização do prazer erótico.

Nas suas memórias, Buñuel, concentrando-se no tema central resume-o assim: “Para mim, tratava-se (…) dum filme sobre o amor louco, sobre um impulso irresistível que atirai, um para o outro, sejam quais forem as circunstâncias, um homem e uma mulher que nunca se poderão unir”.

Este amor faz oscilar todos os rituais e tabus burgueses. E isto acontece no meio de imagens irracionais, divertidas, oníricas ou francamente sacrílegas. Por outro lado, o seu estilo é perfeitamente clássico, quase neutro. “De tal forma que”, como nos diz Jacques Lourcelles (Dictionnaire du Cinema. Les Filmes), o cinema deu às ideias e aos sonhos buñuelianos não essa languidez e essa leveza próprias das elucobrações habituais das vanguardas, mas, pelo contrário, a força das evidências gravadas em mármore.

A sua projecção provocou um escândalo: os jornais católicos pediram a excomunhão do produtor, Pierre de Noilles; durante os treze dias em que esteve em exibição, sucederam-se os incidentes provocados por grupos conservadores que atacaram o cinema; e a Prefeitura da Polícia acabou por proibir o filme. Essa proibição haveria de ser mantida durante 50 anos. Só em 1980 foi exibido comercialmente em Nova Iorque, em 1981 em Paris e em 1982 em Portugal…

Num ensaio datado de 1937, Henri Miller afirmou que ”aqueles que se indignam, porque acham que o filme é contrário à ordem e aos, valores, nunca perceberão o que é a ordem e o que são os valores (…). É o elemento barroco da vida humana, ou melhor, da vida do homem civilizado, que dá à obra de Buñuel a sua dimensão de crueldade e de sadismo. Crueldade e sadismo desamparados, porque a grande virtude de Buñuel consiste em recusar enredar-se na deslumbrante teia de aranha do da lógica e do idealismo com que os homens tentam ocultar a sua verdadeira natureza”.

sábado, 16 de janeiro de 2010

Manuel Alegre candidato à Presidência da República

Num jantar de apoiantes realizado ontem, 15 de Janeiro, em Portimão, Manuel Alegre anunciou a sua candidatura à Presidência da República.

A propósito, recordo as considerações que ouvi a Vítor Ramalho, há uns dias atrás, na Televisão. Afirmava ele, acerca destas eleições e da provável candidatura de Alegre, que o Bloco de Esquerda pretendia empurrar o PS para uma “Frente Popular”, sabendo-se já que essa estratégia, tentada nos anos 30, não deu resultados.

Parece-me bem que as Frentes Populares dessa época surgiram como tentativas de contrariar a ofensiva dos fascismos e procurar alternativas de governação à esquerda. O paralelo com a candidatura de Alegre é absurdo. Trata-se de uma candidatura unipessoal, não se baseia em nenhum programa de governo e é e independente de quaisquer acordos partidários.

Vítor Ramalho propunha em alternativa uma candidatura politicamente mais abrangente, mais capaz de captar votos ao centro. Mas os nomes que por esses lados têm sido aventados são, pelo contrário, personalidades que representariam apenas um sector do PS. O que é que levará Vítor Ramalho a supor que um “Soares de 2ª” obteria nas próximas presidenciais melhores resultados do que aqueles que conseguiu o produto original nas eleições anteriores?

Manuel Alegre é o candidato que melhores condições reúne para unir a esquerda e vencer Cavaco Silva. Espero bem que ressentimentos antigos não impeçam ninguém de verificar aquilo que é óbvio.

sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

2) Socialisme – notas à margem de algumas entradas do Dictionaire Albert Camus, de Jeanyves Guérin

“Não poderei ter prazer em viver num mundo onde tenha desaparecido aquilo a que chamaria a esperança socialista", confiou um dia Camus a Roger Quillot.

O que entende Camus por “socialismo”?

Em 1944, distinguia dois projectos: o que designava por “socialismo marxista”, defendido pelos partidos comunista e socialista, e aquele a que chamava “socialismo liberal” e que seria protagonizado pela Resistência, e interrogava-se acerca da possibilidade de, a partir do confronto entre os dois, se poder chegar a uma nova síntese.

Pensava então que o ponto fraco o ponto fraco do primeiro era o seu optimismo histórico, o paradigma do progresso inevitável, o mito do futuro radioso. E afirma não acreditar nas “doutrinas absolutas e infalíveis”, preferindo às ideologias, a luta pela “melhoria obstinada, caótica, mas incansável da condição humana”.

Em 1944, num artigo publicado no Combat, Camus afirma ser preciso conciliar a justiça com a liberdade. E explicita assim as suas ideias: “é preciso fazer reinar a justiça no plano da economia e garantir a liberdade no plano político”. E Camus, que defendia então a nacionalização (aliás, prefere o termo “socialização”) dos grandes bancos, das companhias de seguros, das minas de carvão e da electricidade, precisa: desejamos para a França uma economia colectivista e uma política liberal. Sem economia colectivista que retire ao dinheiro o seu privilégio para o entregar ao trabalho, uma política de liberdade é um engano. Mas sem a garantia constitucional da liberdade política, a economia colectivista arrisca-se a absorver toda a iniciativa e toda a expressão individuais”.

Camus está aparentemente próximo do partido socialista, mas critica a SFIO por confundir “a realização da sua doutrina com a obtenção de uma maioria na Assembleia” e, na década de 50, mostra-se cada vez mais descrente na possibilidade da sua regeneração. Ao mesmo tempo, demarca-se claramente dos comunistas, defensores de um Socialismo “cesarista” e “autoritário”, defendendo que, na União Soviética, a nacionalização dos meios de produção não instaurou uma economia socialista, mas um capitalismo de Estado, onde uma nova oligarquia se substituiu à antiga. Contra uma certa intelectualidade de esquerda que tende a justificar aquilo que se conhecia já das perseguições estalinistas, Camus afirmará sempre a sua recusa da ideia de que os fins justificam os meios. E será sempre um defensor intransigente e incondicional do sufrágio internacional, do pluralismo partidário, da independência da imprensa e da separação dos poderes.

Contudo, colocar-se-á entre aqueles que pensam que a crítica do totalitarismo não pode legitimar um capitalismo entregue à devastação social, indiferente à perenização das injustiças e fautor do crescimento das desigualdades. A luta contra a exclusão e a pobreza exige medidas de redistribuição e, para isso, defende o Estado providência, a planificação, as nacionalizações, a co-gestão e autogestão.

Nota à margem: Jeanyves Guérin afirma que o nome e os escritos de Camus poderiam servir ainda hoje de caução aos renovadores e aos refundadores da esquerda francesa. Só da francesa?
Haiti

Todos temos conhecimento da terrível tragédia que se abateu sobre o Haiti. Não tenho palavras que possam exprimir a minha dor. Escrevo apenas para alertar os meus leitores que incluí na lista de blogues que ando a seguir o blogue de Fernando Nobre, Contra a Indiferença, e o da AMI onde podem encontrar informações actualizadas bem como instruções acerca da melhor forma de exprimirem a vossa solidariedade com a população daquele país tão martirizado.

quarta-feira, 13 de janeiro de 2010

Na morte de Eric Rohmer



Morreu anteontem Eric Rohmer. Embora não tenha os seus últimos filmes entre os meus favoritos (pude ver A Inglesa e o Duque (2001), O Agente Triplo (2004) e Os Amores de Asrtée e Céladon (2007); julgo que Le Canapé Rouge não chegou a ser exibido em Portugal), revisito com regularidade e sempre deliciado outros mais antigos. Em Portugal, já foi editada em DVD a série completa do Contos Morais e a dos Contos das Quatro Estações. Espero agora, ansiosamente, pela edição dos filmes da série Comédias e Provérbios. Talvez um dia, se a direcção da Velha-a-Branca estiver para aí virada, possa organizar aí a projecção de alguns deles…

Entretanto, reli um pequeno comentário escrito por mim há mais de um ano (para a gaveta, ainda não existia este blogue), a propósito da possibilidade da constituição de um novo partido que, em França, seguisse as pisadas do Die Linke, na Alemanha. Tendo escrito antes desta uma posta sobre a morte de Daniel Bensaïd, pareceu-me que seria curioso dá-lo agora a conhecer uma vez que, de alguma forma, estabelece uma relação entre ambos. Uma relação irónica, é certo, mas sempre vi na ironia um dos aspectos mais divertidos nos meus Rohmer preferidos...

Escrevia eu, em Janeiro de 2009, o seguinte:

Parece que está em discussão a possibilidade de constituição de um novo parido de esquerda em França. Não conheço pormenores, mas poderão estar envolvidos no processo a LCR, o PCF, dissidentes do PSF e outros grupos menos conhecidos.

Se bem conheço os franceses, não me parece enredo para um “filme de acção”. Estará mais próximo de um de Eric Rohmer. Imaginemos um labirinto. No centro do labirinto está um pedaço de queijo e, de fora dele, um rato. O ratito fareja o queijo e embrenha-se no labirinto, mas como é que há-de chegar ao petisco? Pensa na melhor solução, decide-se por um caminho, vai ter a um beco sem saída, volta para trás, experimenta um novo percurso… O tempo passa e, às vezes, com muita sorte, lá come o queijo. Na maior parte dos casos, desanimado, abandona o labirinto em jejum. Aquilo que querem as personagens de Rohmer não é um bocado de queijo: trata-se antes de chercher la femme. Mas, os caminhos que percorrem são igualmente tortuosos.

É que, ao contrário dos portugueses, que têm uma aversão considerável pelo pensamento abstracto, os franceses não conseguem mexer um dedo sem primeiro elaborar uma filosofia que o justifique. E, portanto, envolvem-se num labirinto teórico do qual, muitas vezes, só conseguem sair em jejum.


Como se sabe, não se vieram a formar um, mas dois novos partidos: o NPA, a partir da LCR, e o Parti de Gauche, formado por dissidentes do Partido Socialista. O PCF manteve a sua autonomia. E, ao contrário do que sucede com alguns dos filmes de Rohmer, nem terá chegado sequer a haver a atracção sentimental que a “filosofia” acabou por contrariar.
Morreu Daniel Bensaïd



Foi um dos fundadores da Liga Comunista Revolucionária e do Novo Partido Anticapitalista francês e dirigente da IV Internacional. Deste filósofo e dirigente político trotskysta, existem várias obras traduzidas e editadas em Portugal. Entre elas, Trotskysmos (Edições Combate, 2008), um mapa muito útil das muitas cisões e tentativas de reunificação vividas pelas organizações trotskystas desde a fundação da primeira IV Internacional até aos nossos dias. Uma história das suas tentativas persistentes (e a meu ver, um tanto patéticas) para conciliar teorias tidas por inquestionáveis com realidades que persistem em desmenti-las.

Segundo Bensaïd, “o afundar do ‘socialismo realmente existente’ libertou uma nova geração de anti-modelos que envenenam o imaginário e comprometem a ideia do comunismo. Mas, a alternativa à barbárie do Capital não se desenhará sem um balanço sério do século que se conclui. Neste sentido, pelo menos, um certo troyskysmo, ou um certo espírito dos trotskysmos, não está ultrapassado. A sua herança sem manual de instruções é, sem dúvida, insuficiente, mas não menos necessária para desfazer a amálgama entre estalinismo e comunismo, libertar os vivos do peso dos mortos e virar a página das desilusões” (ob. cit., p.133).

Não partilhando grande parte das suas ideias, não posso deixar de afirmar que, com a sua morte, a esquerda ficou mais pobre.

segunda-feira, 11 de janeiro de 2010



1) Gauche – notas à margem de algumas entradas do Dictionaire Albert Camus, de Jeanyves Guérin


Em 1955, Camus escreveu: “Je suis né dans une famille, la gauche, où je mourrai, mais dont il m’est difficile de ne voir pás la déchéance”. Na verdade, a sua relação com os partidos da esquerda francesa nunca foi pacífica. Condenava no PCF a sua submissão ao PCUS e ao estalinismo, numa época onde a sua influência quer no movimento operário como no seio dos intelectuais de esquerda era claramente dominante. Volta-se para os socialistas de quem espera que combatam a hegemonia ideológica e cultural dos comunistas na esquerda, mas a SFIO continua a reivindicar-se do marxismo ao mesmo tempo que se aproxima politicamente dos partidos da direita. Perde assim “em todos os tabuleiros”.

Camus tentará distinguir uma esquerda moderada de uma esquerda extremista sem derrapar para a direita, como fez Raymond Aron. Segundo Jeanyves Guérin, “esta teoria das duas esquerdas anuncia aquela que foi defendida por Michel Rocard no fim dos anos 70” e que “cruza duas distinções, a que separa a democracia do totalitarismo e a que opõe modernidade e arcaísmo”.

A ambição de Camus apontava no sentido de uma união da esquerda que englobaria socialistas modernistas, sindicalistas independentes e anarquistas. Mas a derrota da estratégia da “frente republicana” proposta por Pierre Mendès France em 1955-56 tornou clara a sua inviabilidade. Restava-lhe constatar a “decadência” e a “esquizofrenia” da esquerda. Pouco antes da sua morte, afirmou que ser de esquerda “malgré lui” e “malgré elle”.

Nota à margem, a pensar na actual situação política portuguesa: será mesmo verdade que a história não se repete?

domingo, 10 de janeiro de 2010

Ciclo de cinema na Velha-a-Branca (2)

Depois da exibição d’ O Gabinete do dr. Caligari, prossegue o ciclo de cinema que programei para Janeiro e que preencherá as noites de 4ª feira na Velha-a-Branca. Desta vez, o o tema é o futurismo e o filme que será projectado no dia 13 é um documentário de Dziga Vertov.

Divulgo aqui o texto de apresentação

Dziga Vertov, O Homem da Máquina de Filmar, 1929


O Futurismo foi um movimento artístico fundado em Itália, em 1909, pelo escritor Marinetti. Caracteriza-se por uma defesa exaltada da modernidade, associada à ideia do triunfo da máquina e da velocidade sobre os conceitos tradicionais da natureza, da beleza e do sentimentalismo.

Manifestou-se na literatura, na pintura, na escultura, na arquitectura, na música… Ou seja: praticamente em todos os domínios artísticos e, portanto, forçosamente, também no cinema. Na Rússia, influenciou poetas como Maiakowsky e pintores como Malevitch.

Denis Kaufman (1895-1954), cineasta que adoptou o pseudónimo Dziga Vertov (“dziga”, do ucraniano “roda”, e “vertov”, do russo, “vertev”, “que significa “girar”, nome que poderíamos traduzir por “pião que rodopia”), criou no campo do cinema documental uma obra que consideramos exemplar.

Com a sua mulher e o seu irmão, fundou o grupo Kinoks cujo nome foi formado a partir das palavras Cine (Kino) e Olho (Glaz), que defendia a “honestidade” do documentário relativamente ao filme de ficção e a superioridade do olhar cinematográfico em face do da visão humana. Rejeitando a pretensão de uma falsa objectividade cinematográfica, fez da exploração das relações olho / câmara / realidade / montagem os pontos de partida para a construção da nova realidade construída pelo cinema, que acompanhava, assim, as transformações sociais relacionadas com a vitória da Revolução de Outubro na Rússia.

No seu filme mais conhecido, O Homem da Máquina de Filmar (1929), oferece-nos em imagens vertiginosas uma perspectiva da vida moderna a partir da representação de um dia na vida de uma grande cidade: o despertar, o movimento febril das ruas, o mundo do trabalho e da produção em série, o tempo de lazer, o cair da noite… É um olhar fascinado diante dos progressos técnicos e das transformações sociais ocorridas na União Soviética no período da NEP.

Dziga Vertov recorre a uma imensa panóplia de recursos cinematográficos: câmara lenta e animação, zooms e zooms invertidos, ecrã dividido, paralítico, imagens múltiplas e desfocadas.. Recusa, portanto, qualquer descrição naturalista, mas reinventa a linguagem cinematográfica que, na sua assumida artificialidade, encarna uma modernidade que mesmo hoje nos espanta e que corresponde à modernidade da temática tratada.

sábado, 9 de janeiro de 2010

Acordo positivo entre o ME, a Fenprof, a FNE acerca da avaliação dos professores

Depois dum impasse de mais de quatro anos, finalmente o Ministério da Educação e os principais sindicatos representativos dos professores do ensino básico e secundário chegaram a um acordo de princípio acerca da avaliação dos docentes.

Mérito da nova Ministra? Sem dúvida. Dos sindicatos? Também. Mas, parece-me que sobretudo resultado da nova situação política saída das últimas eleições legislativas. A vitória dos professores sobre um modelo de avaliação aberrante começou a construir-se nas escolas, ganhou força com as grandes manifestações nacionais que se realizaram em Lisboa, mas teve um momento decisivo quando Sócrates perdeu a maioria absoluta. E, convém não esquecê-lo, o voto dos professores teve nesse resultado uma importância nada desprezível.

Na minha opinião, a questão da avaliação não terá ficado resolvida da forma ideal. Preferiria que a avaliação resultasse da apreciação de um júri formado por elementos ligados à escola onde o docente lecciona e por outros que lhe fossem externos. Julgo que ficariam assim mais bem defendidas as condições de isenção e rigor indispensáveis a uma avaliação justa. E também me parece que reduzir os professores avaliados àqueles que, em cada ano lectivo, se encontrassem em situação de poder mudar de escalão teria a vantagem de não sobrecarregar os professores e as escolas das tarefas relativas à avaliação, permitindo-lhes concentrar-se na sua função fundamental – ensinar. Contudo, foi o acordo possível e, no fundamental, parece-me positivo.

Será agora necessário falar menos nos “interesses dos professores”, e mais na defesa da qualidade do ensino nas escolas públicas. E, a esse nível, os estragos provocados pelo Ministério de Maria de Lurdes Rodrigues, deixaram-nos a todos uma pesada herança. Há ainda um longo caminho a percorrer em matérias como horários, currículos, programas, avaliação dos alunos, etc.

Fica-nos a esperança que o novo clima de diálogo e negociação que entretanto parece ter sido aberto não se esgote na avaliação dos professores, mas se estenda à imprescindível avaliação de todo o nosso sistema de ensino.

terça-feira, 5 de janeiro de 2010

Ciclo de cinema na Velha-a-Branca


O meu amigo José Coimbra tem vindo a organizar na Velha-a-Branca uma série de ciclos de cinema que procuram compensar o panorama desolador oferecido em Braga pelo circuito comercial. Desta vez desafiou-me para seleccionar os filmes que serão projectados em Janeiro. A ideia era mostrar obras representativas de diferentes estilos que se tivessem manifestado tanto no cinema como nas artes plásticas e na literatura.

Escolhi os seguintes:

Para o expressionismo, O Gabinete do Dr. Caligari, de Robert Wiene; para o futurismo, O Homem da Máquina de Filmar, de Dziga Vertov; para o surrealismo, O Cão Andaluz, de Buñuel e de Dalí; e para o neo-realismo, A Terra Treme, de Visconti.

Eis o texto de apresentação do primeiro, que será apresentado já amanhã, dia 6-1-10:

ROBERT WIENE, O GABINETE DO DR. CALIGARI, 1919

O expressionismo é uma corrente artística que se manifesta na pintura (Ernst Kirchner, Karl Schmidt-Rottluff, Erich Heckel), na literatura (Wedkind, George Trackl, Gottfried Benn), na música (Schönberg, Webern, Alban Berg), na arquitectura (Bruno Taut, Mendelshon) e também no cinema (Murnau, Fritz Lang).

Num sentido lato, podemos considerar expressionistas todas as obras de arte que assumem uma atitude não naturalista, na medida em que nos propõem uma visão do mundo que não valoriza a representação da realidade observável, mas privilegia a invenção das formas que melhor traduzam os impulsos, emoções e sentimentos do artista. Num sentido mais restrito, refere-se ao expressionismo alemão dos anos 1910-30, onde são recorrentes os temas da solidão do indivíduo na grande cidade, da sexualidade oprimida e degradada e da omnipresença da morte.

Wiene realizou em 1919 O Gabinete do Dr. Caligari que é muitas vezes considerado como o filme-manifesto do cinema expressionista alemão. Realizado num preto e branco posteriormente tintado e inteiramente filmado em estúdio, o filme recusa qualquer abordagem naturalista: a interpretação dos actores é irrealista, a sua maquilhagem oferece-lhes uma facies caricatural, o ambiente onde se movem é assumidamente estilizado. A formação teatral de Wiene revela-se claramente nos planos-sequência onde a câmara fixa foca o centro do palco. Explora-se, no entanto, repetidamente, o recurso cinematográfico do close-up do rosto da personagem principal na sequência.

O horror despertado pela morte violenta, pelo assassinato provocado por forças que a razão não controla, é um tema capital do cinema expressionista alemão. Recordem-se os exemplos do Nosferatus (1922) de Murnau, d’ A Buceta de Pandora (1928) de Pabst ou do Matou (1931), de Fritz Lang. Também é esse o tema deste filme de Robert Wiene.

O argumento de Carl Meyer e Hans Jianowitz remete-nos para o mundo labiríntico e claustrofóbico da loucura. O narrador (Francis) conta a uma personagem secundária (e a nós), num longo flash-back, a história do Dr. Caligari. Trata-se de alguém que, na actualidade, tomou o lugar do misterioso Caligari que, em 1726, cometeu vários crimes por intermédio de um sonâmbulo que havia hipnotizado. Também o novo Caligari controla um indivíduo, Cesare, que vive num estado de catalepsia do qual só desperta por sua ordem. Será ele, como Francis nos quer fazer crer, o responsável pela série de crimes que, entretanto, são cometidos? Ou não passa tudo de uma fantasia de Francis, ele próprio internado num hospício do qual o Dr. Caligari é o director? Está Francis louco ou e é ele a única personagem saudável num mundo submetido ao poder de um louco?
Hermann Warm, Walter Reimann e Walter Rohrig oferecem-nos um fantástico cenário teatral. Os violentos contrastes de claro-escuro, as linhas serradas e as perspectivas distorcidas transmitem-nos uma forte impressão de desequilíbrio e ansiedade, afirmando-se como um aspecto fundamental (e particularmente audacioso) de um filme que, em última análise deve ser visto como o resultado de um projecto colectivo, envolvendo num plano de co-autoria o realizador, os argumentistas e os cenógrafos.

Na interpretação de Kracauer, o Gabinete do Dr. Caligari, realizado pouco depois da derrota da Alemanha na 1ª Guerra Mundial, surge-nos como uma premonição da sede de poder e da espiral de violência que acabará por conduzir a Alemanha ao nazismo, seguindo a personagem carismática e hipnótica.de Hitler.

segunda-feira, 4 de janeiro de 2010

Albert Camus morreu há 50 anos

Publiquei aqui, em 15 de Novembro de 2009, um post sobre Camus e, em particular, sobre a denúncia que faz n’ O Homem Revoltado das visões messiânicas justificadoras do terrorismo. Publiquei-o então a propósito do 20º aniversário da queda do Muro de Berlim. Não quero repetir-me. Se volto hoje a Camus, é porque, depois disso, descobri um livro que gostaria de recomendar aos meus leitores que porventura possam estar interessados em conhecer melhor a sua obra. Trata-se do Dictionaire Albert Camus, de Jeanyves Guérin. Pode ser adquirido através da amazon.fr. Uma obra a não perder.